Entre flores, pedras e espinhos, encontrei Valinhos – e sempre tanto e tanto me espanto. Já descrevi a cidade em outros termos, em outros tempos, em outros textos, em outra verdade. Mas cada vez que me rendo vendo sua simplicidade, me vejo de novo escrevendo sobre suas ruas de ladeiras escondidas entre montanhas e lojas de comércio sem qualquer poesia. Me rendo vendo a distância – substantiva mesmo, sem crase –, de olhos espichados ao longe-nada das montanhas discretas que cercam seu breves vales. Há uma parte de Valinhos que é feita de terra e gente, de vagares entre alamedas, de olhares por entre casas modestas beirando paralelepípedos antigos felizmente esquecidos das autoridades. A outra parte, a que quer ser presunçosa como um condomínio de luxo de alto padrão, essa eu nem sei, não quero saber e deixo-a para os de pouca alma que delas sabem.
Um dia, vi Valinhos coberta de uma chuva fina quase finada. Era pura poesia molhada entre árvores de atmosfera divina. Mostrei a cena, como num quadro, a uma colega de trabalho que passava ao lado. Ela viu e desviu o meu desenho no ar delineado. Ela viu e não viu o sagrado gotejando nos telhados das casas comuns que se contrapunham aos imensos telhados das mansões de condominiados pobres de coração. Mostrei a ela as gotas, nas folhas, pendentes como notas penduradas na pauta de uma canção. Mostrei a ela o spray fininho da garoa passando no nariz da gente, rente-rente. Mostrei a ela como a cidade fica bonita quando a chuva leve joga sobre ela pinceladas de tinta cinza muito fina-quase-branca. Minha colega me olhou séria, deu de ombros, mostrou mecanicamente os dentes e partiu. Seus afazeres eram mais importantes do que olhar a paisagem sob a chuva.
Há de se ser o tempo para se saber olhar as casas sem graça de tão bonitas de Valinhos – porque ver, olhar e enxergar são coisas totalmente diferentes. Há de se saber ser o tempo para ver o tempo depositar nas coisas simples de seu corpo de cidade uma anti-velocidade feita de festas de uva e vinho. Quando sou Valinhos, no tempo, na pausa que forçosamente me abro nos idos da vida, recuso-me suas avenidas que se querem movimentadas, desprezo seus vizinhos mesquinhos cheirando a vileza, segredos e vinhedos. Atenho-me e enterro-me em seus arredores humanos cheios de terra, árvores e bichos. Saio de quem acho que sou e tanto desgosto para ser apenas mais um em seu ninho. Então, passeio entre jabuticabeiras carregadas de sonhos, adentro a galinheiros encantados repletos de esperança em forma de ovos, caminhos por entre fileiras de galos, galinhas e pintinhos cheios de penas sentidas e tão coloridas. E o ouço, pela madrugada, o sol a bater as asas por três vezes anunciando não mais uma traição, mas a invernada.
Não invejo o ourives quando escrevo – como cantou sobre si Bilac. Na minha franciscana atividade – distante anos luz de qualquer genialidade bilacquina –, invejo o pintor em sua capacidade concreta de concretizar seu olhar sobre a matéria vivida, sobre a artéria que pulsa fervida em seus pincéis policromáticos. Se eu fosse pintor (ai, quem dera) pintava em quadros a Valinhos-comovida de minha visão. Não a que está dada na realidade fria de olhares que buscam fora o que faltam dentro de si, mas a cidade querida que imaginada – a cidade pensada em desejos de outros mundos: refúgio de simplicidade, simples cidade a ser sempre no meu olhar recriada. Se eu fosse pintor, pintava Valinhos com a cor do amor que – agora livre de dores veladas – me faz sentir, em tempos de crise e solidão, que é a vida não é mais do que o cantar das aves, nos galhos das árvores, empoleiradas.