Vírgulas da Covid

Camilo Quartarolo

 

O português lusitano é marco nas universidades e por referência do bom falar e escrever, assim como o latim antigo, que não fazia uso de sinais gráficos como a vírgula, cuja frase ficava solta numa tabuleta em carvão, do tipo: “vai sem máscara não pegarás Covid”. Se você não souber usar a vírgula poderá se infectar com o português ruim.

Cuidado! Não se livre do português. No grego e latim de antes, línguas mães das latinas, inclusive da portuguesa, não havia vírgulas e isso levou muita gente à morte – não por falta de respiradores, mas pela ambiguidade das frases.

Saramago assustou os gramáticos, afrontou a pontuação e o império dos travessões e, para escrever os diálogos dos personagens, intercalou-os entre vírgulas, usando da maiúscula para o falante responder. Saramago queria escrever sem tirar o lápis do papel, isso para quem reescrevia o romance oito vezes para ver se saíra conforme concebera ou houvesse erros crassos da linguagem. Muitos torceram o nariz para o Nobel comunista hormonal, mas o português com gênio de espanhol não arredou pé.

Portugal é referência sim, monopólio do falar jamais! Pois nossa essência oral dos trópicos não suporta tal imposição. Hoje o Brasil e nações lusófonas, outrora subjugadas político e economicamente, fazem acordos ortográficos, numa média dos falares, registros e oralidades. Há países na África em que seus habitantes parecem portugueses negros falando, falam com o acento oral tal qual a antiga metrópole. O Brasil é singular. A forte influência indígena, a afluência forçada de múltiplos povos africanos nos deu um acento próprio de brasilidade. Nossa língua é amaciada, melódica, perceptiva, concisa, cheia de interjeições.

Sublingual, digamos figurativamente, vieram os dialetos como o caipira nosso de cada dia, cujas distorções próprias por muitos considerados erros não figuram na média do falar de países lusófonos ou entram nos Acordos Ortográficos, mas que manjar nosso caipirês, que até os portugueses invejam! Aqui, desculpem-me os leitores mais pudicos (e pior, os escritores pudicos), mas temos uma palavra para nádegas invejada pelos lusitanos que usam um oxítono. Ora o termo bunda é relegado a chulo, mas é a melhor expressão para a região glútea, região erógena de ambos os sexos sem o protagonismo ou alegoria escandalosa do seu centro escuso.

Nos acostumamos com o que não gostamos e com o que nos é imposto. À língua poucos dão o real valor, o lastro correspondente, e ela é ferramenta que pode salvar ou matar, edificar, curar. Ou, por muito repetida, pensamos que já a conhecemos e repetimos sem a vivência que nos foi transmitida, mas como palavra vã. A língua evoluiu na forma e com as sociedades.

A pitonisa escrevia numa tabuleta, sem uso de vírgulas: vai não morrerás na guerra. Se o jovem morresse, dizia à família que advertira, “vai, não, morrerás na guerra”; contudo, se o jovem regressasse vivo, a pitonisa vaticinara “vai, não morrerás na guerra”. Hoje podemos mudar a frase a quem quer aglomerar em festas como “vai, sem máscara não contrairás o vírus! ”, ou “vai, sem máscara não, contrairás o vírus!” – pus até uma exclamação de lambuja, por minha conta.

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Camilo Irineu Quartarolo, escrevente judiciário, escritor

 

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