Ao sair de casa para comprar uma folha de papel almaço para fazer um trabalho acadêmico, ela se salvou da queda do Comurba
“A vida é como um barco; um remo é movido pela minha mão e o outro pelo acaso”. (Autoria desconhecida)
O bater de asas de uma borboleta em um lugar pode causar um furacão em outra parte do mundo. O chamado “efeito borboleta” é metáfora que explica a teoria do caos, segundo a qual existem sistemas suscetíveis às variações no universo que podem gerar resultados caóticos e imprevisíveis. Existem circunstâncias em nossas vidas que, mesmo sendo uma questão de acaso, são capazes de traçar uma linha definitiva entre o antes e o depois. Pequenos acontecimentos são capazes de provocar grandes alterações na realidade.
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Era um típico dia de primavera, aquele 6 de novembro, em 1964. Clima agradável, nem calor, nem frio. Os jornais da cidade abordavam os assuntos de costume. Política local e nacional, crônica social trazendo as novas do Clube Coronel Barbosa, a escolha da Rainha da Festa do Peixe e o desempenho do XV de Piracicaba no campeonato daquele ano.
O começo de tarde transcorria calmamente naquela sexta-feira – talvez até já havia clima de fim de semana. Tráfego de veículos, caminhar de pedestres, brincar de crianças. As casas de comércio com as portas abertas.
Na calçada direita da rua Prudente de Moraes, no trecho entre a rua Aferes José Caetano e a Praça José Bonifácio, havia algumas residências, uma loja de discos, a sede do jornal O Diário de Piracicaba e uma pensão. Todos a poucos metros do Edifício Luiz de Queiroz, com seus quinze andares em fase de acabamento, em cujo térreo já funcionavam um cinema, uma bomboniere, um museu de cera, dentre outros estabelecimentos dentro da obra monumental da Companhia de Melhoramentos Urbanos, a Comurba.
A loja de discos Casa Ópera recebia frequentadores habituais. O bancário Adail Ribeiro Filho acabava de entrar, a fim de comprar discos para um colega. Enquanto ele entrava na loja, saía, em direção à calçada, o comerciante Antonio Neder.
No Diário de Piracicaba, Sebastião Ferraz, Geraldo Nunes, Euclésio Boscariol e demais funcionários haviam chegado há pouco, no número 642. Em uma das residências ali próximas, a senhora Ana Izabel Marcos Pereira recebia a visita das filhas Almerinda, Délia e Maria do Carmo, e da neta Fátima.
Na pensão vizinha, o estudante de Agronomia José Francisco Telles Rodrigues, após almoçar, voltava aos estudos em seu dormitório. Da mesma pensão, havia saído há pouco a acadêmica de Ciências Econômicas, Teresa Tonon, por uns minutos, para comprar uma folha de papel almaço na Livraria Brasil.
O relógio da torre da Catedral de Santo Antônio marcava 13h35.
Então, a calmaria da tarde era subitamente interrompida: a metade do Edifício Luiz de Queiroz, a obra magistral da Comurba, voltada para a rua Prudente de Moraes, desmoronava em questão de segundos. Pessoas soterradas morriam instantaneamente. As que não eram atingidas pelos escombros, tinham as atividades cotidianas repentinamente alteradas.
Como esses acontecimentos foram vivenciados pela estudante Teresa Tonon estão descritos em reportagem de ‘O Diário de Piracicaba’, na edição do dia 11 de novembro de 1964. A matéria, intitulada “‘Uma folha de papel almaço me salvou a vida’”, traz, em detalhes, o relato de Teresa:
“Encontrava-me em meu quarto na pensão da rua Prudente, terminando uma tese para a cadeira de Economia Política. Aconteceu que esgotaram-se as folhas nas quais batia o referido trabalho. Como ainda faltava alguma coisa a acrescentar na tese, convidei minha colega de quarto Ramires Begman Aguiar, também estudante, procedente da cidade de São José dos Campos. Minha colega se negou inicialmente a sair. Depois insisti mais um pouco e, finalmente, ela acedeu ao convite, isso às 13h30. Fomos comprar as folhas necessárias, na Livraria Brasil. Retornamos pela praça, passando pela fonte. Estávamos na calçada do jardim, defronte ao Cine Plaza, e quando íamos atravessar a rua… olhei para cima e vi o último andar do prédio fazer um movimento. Inicialmente pensei que era minha vista. Depois o prédio novamente fez movimento, lento, caindo as lajes, umas sobre as outras. Vi até a segunda laje, depois corri para o centro da praça, sendo que minha colega correu também sem saber do quê. Quando estava fugindo recebi uma tijolada no braço direito. Caí ao chão, mas fui me arrastando procurando fugir de outros objetos que caíam nas minhas proximidades. Graças a Deus, escapei ilesa”.
Após cessar o forte estrondo e o chão parar de tremer, uma densa nuvem de poeira se ergueu. Ainda muito assustada, Teresa se levantou. Não enxergava nada. Respirava mal. E ouvia gritos desesperados, pedidos de ajuda, súplicas de socorro. Muitos se perguntavam o que tinha acontecido.
Teresa, que tinha visto o começo do desabamento, sabia exatamente o que havia acabado de acontecer. Logo, a frase mais ouvida era “O Comurba caiu! O Comurba caiu!”. Seguindo em direção à pensão, Teresa se deparou com um cenário desolador na rua Prudente de Moraes.
Da sede do Diário, Sebastião Ferraz, Geraldo Nunes, Euclésio Boscariol e demais funcionários saíam, em desespero, em direção à rua a fim de ver o que tinha acontecido e como poderiam prestar algum tipo de ajuda.
A Casa Ópera restara totalmente destruída, matando o bancário Adail e outros que estavam em seu interior. O comerciante Antonio Neder, que caminhava em frente à loja, também morreu. Na casa ao lado, Ana Izabel, as três filhas e a neta, todas mortas. E na pensão, em meio aos escombros, morria o estudante de Agronomia, José Francisco Telles Rodrigues.
Na hora, Teresa pensou que, por minutos, ela estaria também na pensão. Soterrada. Morta. Sua vida começou a ser salva dias antes, através de um fato que gerou uma sequência de desencadeamentos que se mostrariam cruciais:
O ato inicial de comprar poucas folhas de papel almaço gerou uma primeira consequência: fez com que a pequena quantidade de folhas se tornasse insuficiente para o seu trabalho acadêmico. Esse número insuficiente de folhas gerou uma segunda consequência: forçou Teresa a ter que sair da pensão para comprar mais folhas. O ato de sair da pensão gerou uma terceira consequência: fez com que Teresa não estivesse presente na pensão no momento do desabamento do prédio vizinho. E o fato de não estar na pensão no instante da queda do edifício gerou uma quarta e determinante consequência: fez com que a vida de Teresa fosse salva.
O acaso, abraçado ao destino, transmutava-se numa folha de papel almaço e salvava a vida de Teresa Tonon. Infelizmente, para outras 48 pessoas (ou talvez mais), o destino, num ato de rebeldia, rejeitou o acaso e abraçou a morte, transformando aquela tarde de novembro de 1964 no centro da cidade num dos dias mais tristes da história de Piracicaba.
ACHADOS DO ARQUIVO – A série “Achados do Arquivo” se pauta na publicação de documentos do acervo do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo. A iniciativa do Setor de Documentação em parceria com o Departamento de Comunicação Social, com publicações no site da Câmara às sextas-feiras, visa tornar acessíveis ao público as informações do acervo da Casa de Leis.