Novembros de minha mãe e saudade

Alexandre Bragion

Ser triste, em mim, resiste. Herança mais rica, de materna hereditária vontade. Ô, se é! Mandala que é tempo, noite adentro – circular vontade (repito). E tanto que, às vezes, me pego recriando ensejos, me vejo refazendo acenos que não eram nem nunca foram meus, mas depois assim, no tempo do meu coração, se fizeram ser. Minha mãe. E digo desse jeito tendo dentro do peito o vento que me irmana aos que agora são como eu: nós, os sem-mães (os sem-mães no presente de se “pegar com as mãos” – para gastar aqui uma paráfrase de essência guimarânea). Os sem-mães que, no todavia, têm as mães no tempo-mandala de si, no tempo circular do vento que roda e nos ronda desde o ventre materno, extinto de tão velho, lar primeiro, ao hoje do quem somos. Que as mães, por vez de cada uma, no ser como são (em beleza e defeito) – e me lembro agora de uma verdade filial de Mário da Andrade – são um caso sério.

Nem tudo o que o resiste em mim, porém, é triste. Bom dizer. Faz siso. Que lembrar-se também é de se provocar o riso. Foi ontem, na farmácia, que a minha mãe que há em mim reapareceu. Lá estava eu, na noite, sem a pressa alguma que Deus me deu, demorando conversa com o atendente do detrás do balcão. Era eu? Fiz os meus chistes. Lamentei doenças do em mim nem tão graves – mas agravadas para render o papo, para gerar mais um (que seja) pequeno naco de prosa. Era eu? Depois reclamei pechincha, agravei de novo o caso, praguejei outros gracejos sobre os descontos não dados. E então vi que senti: era eu? No de repente da vontade do vento, que gira, era eu igual a minha mãe – no como eu a via – quando ia com ela à farmácia que eu a levava.  E a fila ria.

Saí pensando no vento que me sentia pela janela do carro. Noite de fim de novembro – de tantos novembros de como me lembro. Novembros antecipando natais que são, mas não são mais. Porque os meus novos natais são a minha mãe, de novo, na mandala do tempo. Tão bom! Natais também são meu pai, confesso sem demora, mas sobre ele e sobre isso me reservo a contar em outra crônica, outra história, que todas ainda lhe devo. Coração, haja. E haja também o tempo. Que ainda já é novembro e me passa e me passo vento. Tão bom! O cheiro forte da cica que o mês, o meu, de nascimento, invade. Cica cheia do cheiro de grama cortada, pinheiro falso de natal, que me arrebenta em aromas e fragrâncias de saudade.

Mandala é o tempo noite adentro. Palavra, que é! E o que mais seria o tempo senão o ar cheio do cheiro dos que vieram antes de nós. Me lembro de novo de Guimarães, porque sinto e sei, de experiência própria ali vivida, no carro, pós-saída da farmácia, no vento que me abraça, e declino feito criança: “o ar tem cheiro de lembrança”.  Se sei. Já escrevi sobre um sem-fim de novembros – novembros feito mãe, novembros de meu pai – e fatalmente sobre outros tantos (quem manda é o tempo) talvez ainda escreva. Que pouco posso contra o aroma da cica. Que nada posso contra o ar da lembrança de que me alimento. Tão bom! Porque nem só o que é triste em mim resiste. Porque enquanto existirem ainda os meus novembros, existirá em mim também a poesia.

Novembro que hoje se despede, outra vez – mandala refeita de evocação, magia de nostalgia, cheiros que se vão para que os ares de dezembro nos invadam. Ai de mim, novembro quase acabado. Sou triste, mas me alegro. Porque hoje (que por bem ainda é novembro) também é sábado.

Alexandre Bragion é cronista deste matutino desde (novembros idos) 2017    

 

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