Eloah Margoni
Querida amiga.
65º dia de reclusão, faz sol, mas sejamos objetivos, decidi-me pelo suicídio e não tente me demover da ideia. Não é pela solidão. Será por causa do medo de agressões, assaltos, desesperos generalizados que nos trazem as mídias? Ver o sofrer do meu povo? Moro num prédio central, fechado, guardado, tenho feito benemerências, lutas políticas solidárias, então digo ser o pretexto falso, mentiroso. Mulher nunca se mata pela ruína do sistema ao qual pertence, isso é coisa de homem exclusivamente. Talvez tenhamos todas a sensação, verdadeira ou não, de que não construímos essa sociedade com nossas próprias mãos, apenas reagimos a ela ao longo dos séculos tentando modelá-la, sei lá. Mais, suicida não precisa explicar ou compreender coisa nenhuma, pior ainda se compreende, melhor nem. Temos nossos motivos pessoais simplesmente; os psicólogos que se virem.
Porém não perco a objetividade característica que, bem o sabe, costumo possuir. Então não discutamos as razões e vamos ao método. Nada de gás, o prédio poderia explodir. O tradicional da Roma antiga? necas, muito sangue, não tenho banheira, usar bacia plástica velha acho deprimente. Opção recusada. Sair à rua simplesmente e adoecer? disseminaria eu o vírus aos outros e tomaria lugar dos que, inúteis ou não, desejam viver, numa eventualidade de socorro. Sair nas periferias a distribuir dinheiro? Poderia ser… falariam de mim, mas tal é vaidade, não haveria alma real neste ato derradeiro. Haveria a hipótese de saltar da janela, mas meu andar é muito baixo. Já sei, irei ao cartório para testamento, deixando o apartamento aos bichos abandonados nas ruas ou casas, e às tartarugas da Praia do Forte; tal escolha sendo tão boa quanto qualquer outra, garanto-lhe. Pena que os cartórios estejam fechados. Precisarei dar um jeito, depois raspar a poupança antes que o malvado governo raspe, viajar para Itália, Espanha. Os aeroportos ainda estão interditados? Sei que irei, de algum modo. Monumentos, ruas desertas, almas de mortos nas vielas. Poderia falar com eles que devem viver bem, em comunidade equilibrada. Verei aves bonitas, rutilantes, em jardins silentes, pombos sem milho nas praças, ninhos de cegonhas em lâmpadas e postes de iluminação das ruas, plantas diferentes mas não restaurantes abertos. Os fantasmas certamente se atrapalham quando lhes pedimos indicações de caminhos, mas quero encontrar o sereno mediterrâneo e nele entrar, molhar os pés, rir feliz. Todos gostaríamos disso, hein?
Tenho, por outro lado, inevitavelmente pensado também nas inúmeras injustiças que cometi ou sofri, nas humilhações que aconteceram feitas por mim aos outros ou dos outros a mim, provocações intencionais ou desavisadas, mas me parecem todas bobagens agora vistas deste ângulo. Ah! as perdas que tive na vida, recordo-as como no lindo poema A Arte de Perder de E. Bishop. Muito ganhei também, mas cada uma das perdas me foi suficientemente dolorosa. Logo eu que pensei merecer tudo. Merecer não, ridículo! era sim querer. Com que garra atirei-me à vida, sempre gulosa, esparramando-me sobre o mundo tal qual vapor d´água, qual névoa branda ou luz suave, desejosa de saboreá-lo!
Esse gosto amargo, tão fel, atualmente nos foi dado e não está em nossas mãos recusá-lo. Mas você não sabe de nada disso, pois já se foi há algum temo. Sempre lhe disse para parar de beber, que o alcoolismo mata, sua burra, idiota! Desculpe-me, sei que não o conseguiu, simplesmente não foi capaz. Mas você também adorava viver, incandescente e voraz. Posso bem imaginar-lhe o susto no pronto socorro, quando, e caso tenha percebido que daquela vez não iria escapar, entre mal estar e vômitos, depois de anos de bebedeiras e drogadição. Todavia, digo-lhe novamente o quanto lamentei sua partida, sua morte, e que você me faz falta!
Por tudo isso que lhe contei e também, mas não unicamente em sua memória, olho agora o sol na varanda, para o rio e suas margens com árvores, começo a pensar que pode ser uma boa, uma ótima ficar viva, bem desperta, vivíssima e continuar assim. É uma promessa. Vivo, só por hoje vivo. Um dia de cada vez.
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Eloah Margoni, médica