Achados do Arquivo – Queima de arquivo: o caso do réu Figueiredo

Parecia ser um processo de meados do século XIX, mas as folhas quase destruídas eram provas anexadas aos autos de um processo

Série ‘Achados do Arquivo’ retoma processo aberto em 1860, em que um tenente foi julgado por atear fogo a documentos de um processo em que ele era o acusado

 

Quando se trabalha com documentos antigos, não é incomum deparar-se com massas documentais que sentiram o peso do tempo. Folhas rasgadas, queimadas, comidas por traças, com conteúdos inelegíveis e perdidos para sempre. Parecia ser o caso, em uma primeira análise, de um processo de meados do século XIX, mas aquelas folhas, quase destruídas, no meio da massa documental, eram, na verdade, provas anexadas aos autos de um processo crime*; eram as evidências de uma suposta queima de arquivos.

O caso se inicia em 26 de agosto de 1860, quando é autuada uma petição do promotor público da Comarca, Carlos Henrique de Aguiar Melchert, na qual solicita “que seja feito um exame de corpo de delito”, devido ao seguinte fato narrado:

“Diz o promotor publico da Comarca que acaba de chegar ao seu conhecimento que se incendiaram os autos crimes que se achavam em poder do 2º Tenente da Armada Antônio Alberto de Figueiredo, e nos quais estava este condenado, ardendo nessa ocasião varias roupas, e tendo-se queimado também o próprio Tenente, e como há pelo menos presunção de que este fato envolver um crime, o suplicante  requerendo a Vossa Excelência que haja de ordenar que se proceda ao auto de corpo de delito sobre o incêndio dos autos, das roupas e do mesmo que se encontrar incendiado, bem como sobre a lesão que em virtude do mesmo incêndio sofreu o Tenente Antônio Alberto de Figueiredo, nestes termos” (em transcrição livre)

Os peritos, Joaquim Ribeiro de Carvalho Rios (profissional) e Fernando José Pinto (farmacêutico), dirigiram-se então à casa do Tenente Antônio Alberto de Figueiredo para realizarem os exames e lá encontraram papéis em branco e autos bastante queimados, que davam apenas para ver algumas assinaturas e textos perto das costuras, sendo que pareciam ser autos-crime que tinha como réu um tenente. Nos autos, os peritos também relataram que encontraram queimaduras no corpo do Tenente Figueiredo e que o incêndio havia sido produzido pelas chamas de uma vela.

No chamado “Auto de Perguntas”, realizado no mesmo dia, há mais informações sobre Antônio Alberto de Figueiredo. Sabe-se que era filho de Manoel Alberto de Figueiredo, natural do Rio de Janeiro, militar e 2º tenente da armada. Sobre o fato, disse:

“(…) entrando para sua casa ontem a noite, deitou-se se deixando sobre uma cadeira contíguaa cama, uma vela acessa e tendo adormecido acordou-se, e achou-se incendiado” (em transcrição livre)

Quando perguntado sobre os autos (que foram queimados), respondeu que não sabia o que eram, nem sabia o motivo de estarem em seu poder. Com despacho do Juiz Municipal, Francisco José da Conceição, no qual julga procedente o corpo de delito, tem início a formação de culpa e o procedimento de intimação de testemunhas.

Das testemunhas inquiridas, algumas delas estavam no momento do incêndio, como o Alferes Martinho José Ribeiro e o soldado Claudino Manoel Ribeiro, todas com testemunhos muito similares: de que foram acordadas pelos gritos de “acuda” do Tenente Antônio Alberto de Figueiredo, que o encontraram “incendiando-se” as suas roupas, bem como estavam incendiadas a cama e os papéis.

Já outras testemunhas atestaram que Figueiredo tinha em sua posse os autos do processo no qual era réu condenado, como o advogado Antônio Francisco Aguiar Barros, que foi procurado pelo tenente para interpor um recurso e o Major Manoel Eufrásio de Azevedo Marques Sobrinho, que também foi procurado para tal fim.

O tabelião e escrivão do judiciário, Manoel Alves Lobo, foi uma das testemunhas e logo declarou ser “hoje” inimigo de Figueiredo:

“(…) achando-se em sua casa na noite de 23 de corrente, ali lhe aparecera a cavalo o Tenente Antônio Alberto de Figueiredo que convidado para entrar (…); Então o mesmo Tenente disse a ele depoente que tendo ele indiciado interposto o recurso de apelação para o Juiz de Direito, lhe vinha pedir os autos do seu processo em nome do Major que em tal ponto entende ser Manoel Eufrásio de Arruda Marques Sobrinho, acrescentando ainda, que se ele depoente hesitava em entregar-lhe os autos que ele indiciado estava pronto a passar-lhe um recibo (…) a vista de que lembrando-se ele depoente que o recibo do individuo de nada valia por não ser empregado do foro, e parecer-lhe o indiciado pessoa de confiança, entregou os autos ao mesmo Tenente, Antônio Alberto de Figueiredo, que prometeu-lhe logo restituir o processo, fazendo-lhe lembrar na ocasião que quando trouxesse-os fazer acompanhar do requerimento de interpolação de apelação.” (em transcrição livre)

Acrescentou ainda que reconhecia perfeitamente os autos queimados, como aqueles entregues ao Tenente Figueiredo, por reconhecer a sua letra, a do oficial de justiça e as assinaturas do tenente e do promotor. E sendo perguntado sobre a pena imposta ao condenado réu neste processo, respondeu que se lembrava perfeitamente, que era um mês e meio de prisão simples e multa correspondente.

Em 31 de agosto de 1860, o Tenente Antônio Alberto de Figueiredo apresentou, por escrito, sua defesa. Segundo ele, os depoimentos das testemunhas eram evidencias da intenção de interpor recurso de apelação ao Juiz de Direito, inclusive do Escrivão Lobo, que “teve a franqueza de declarar em pleno tribunal que era inimigo figadal” e acrescentou:

“De posse dos autos, e da indicação dada pelo advogado, o indiciado voltou a sua casa afim de no dia seguinte dar principio ao recurso; mas de conformidade com seus hábitos, que exigem a leitura de algum papel para conciliar o sono, ao deitar-se tomou o processo para pôr-se bem ao fato de seu conteúdo, e insensivelmente adormeceu acordou- se vitima do incêndio que o consumiu, como comprovam as testemunhas que habitam na mesma casa” (em transcrição livre)

 

Apesar das alegações de ter sido aquele um fato casual, o Juiz Francisco José da Conceição julgou procedente o procedimento contra o Tenente Figueiredo, pois não caberia ao juiz formador da culpa apreciar a circunstância de que o réu não teve intenção de cometer o crime, enquadrando assim o indiciado no artigo 167 do Código Criminal (1830), que tem a seguinte redação:

 

Art. 167. Fabricar qualquer escritura, papel, ou assinatura falsa, em que não tiver convindo a pessoa, a quem se atribuir, ou de que ela ficar em plena ignorância; fazer em uma escritura, ou papel verdadeiro, alguma alteração, da qual resulte a do seu sentido; suprimir qualquer escritura ou papel verdadeiro; usar de escritura, ou papel falso, ou falsificado, como se fosse verdadeiro, sabendo que o não é; concorrer para a falsidade, ou como testemunha, ou por outro qualquer modo; penas – de prisão com trabalho por dois meses a quatro anos, e de multa de cinco a vinte por cento do dano causado, ou que se poderia causar.

 

O Tenente Antônio Alberto de Figueiredo iria a júri. Mas não tão logo. Apenas em 1862 dois ofícios são anexados ao processo, ambos ao juiz Francisco José da Conceição.

Um do Quartel da cidade de Piracicaba, informando que, em cumprimento ao solicitado, havia sido recolhido à prisão o 2º Tenente Honorário, Antônio Alberto de Figueiredo, ressaltando que estava recluso no quartel dos praças da marinha por não haver cadeia pública para receber pessoa que goza de honras militares. Já outro, enviado pelo presidente da província de São Paulo, Manuel Joaquim do Amaral Gurgel, tinha o seguinte teor:

 

“Em resposta ao seu oficio de 27 do mês findo, em que Vossa Excelência me participa que tendo chegado a essa cidade uma monção do Itapeva, encarregada ao 2º Tenente Antônio Alberto de Figueiredo, e achando-se este condena do por esse juízo a mês e meio de prisão simples e multa correspondente à metade do tempo, mínimo das penas do art. 237 §2º do Código Criminal com referência ao art. 238, e pronunciado no artigo 167, requisita Vossa Excelência a sua prisão, e sendo lhe ele entregue, mandou recolhe-lo ao quartel dessa cidade; tenho a dizer-lhe que a vista das observações constantes do seu dito oficio devera Vossa Excelência conserva-lo no referido Quartel” (em transcrição livre)

 

O ofício do Presidente da Província traz dois pontos interessantes. O primeiro que, aparentemente, o Tenente Antônio Alberto de Figueiredo estava retornando a Piracicaba. E o segundo, que se tem uma referência mais clara do crime pelo qual era havia sido previamente condenado – injúria:

 

Art. 237. O crime de injuria cometido por algum dos meios mencionados no artigo duzentos e trinta; 2º Contra qualquer Depositário, ou Agente de Autoridade publica em razão do seu oficio; Penas – de prisão por três a nove meses, e de multa correspondente á metade do tempo.

Art. 238. Quando a injuria for cometida, sem ser por algum dos meios mencionados no artigo duzentos e trinta, será punida com metade das penas estabelecidas.

 

O caso iria, agora oficialmente, ao júri, tendo como réu o Tenente Antônio Alberto de Figueiredo, acusado de incendiar arbitrariamente os autos de um processo de injúria, no qual havia sido condenado. A sessão do tribunal do júri ocorreu em 5 de março de 1863 e, após todos os ritos do processo, o veredito: absolvição.

Aqui foi narrada a ocorrência de queima de arquivos que aconteceu na Piracicaba de meados do século 19. Proposital? Não! Segundo, é claro, a sentença da época.

 

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*O processo integra os documentos doados pela família de Jair Toledo Veiga e está disponível, na integra, no Acervo Histórico da Câmara Municipal de Piracicaba.

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