A ingenuidade do Papa e a importância das hipóteses

 

Armando Alexandre dos Santos

 A sociedade moderna estimula a formação de gente passiva, acarneirada, que não reflete. Os grandes meios de comunicação social mais parecem máquinas cientificamente planejadas para produzir indivíduos não críticos. Isso era o que ensinava o Prof. Samuel Pfromm Netto, referindo-se ao “vício televisivo” que condicionava as mentes e prejudicava o desempenho escolar. Hoje esse velho vício já se encontra superado por outros vícios tecnologicamente mais avançados e, por isso mesmo, muitíssimo mais perniciosos. Que diria, do fascínio hipnotizador dos smartphones que hoje todos têm em suas mãos, o saudoso mestre piracicabano?

Na década de 1957, quando se generalizava por todo o mundo a televisão, o Papa Pio XII deu a público uma encíclica, intitulada “Miranda prorsus” (admiráveis progressos), na qual exprimia seu entusiasmo pelo novo invento. Em sua visão candidamente otimista, o Papa augurava que a televisão seria algo benéfico para a humanidade, pois permitiria espalhar o Evangelho pelo mundo inteiro, com uma capacidade de irradiação e penetração antes impossível. Referindo-se a essa encíclica, Samuel costumava dizer, sorrindo: “Ah! Como foi ingênuo o Papa!”

Pensar e refletir é próprio do ser humano. Desde que correta e inteligentemente estimuladas, todas as pessoas o fazem, todas têm algo de filosófico. mesmo quando não se dão conta disso. Como ensinou Friedrich von Hayek (Nobel da Economia em 1974), todos se movem logicamente por ideias, e pretender que as ideias não têm importância significa deixar-se passiva e acarneiradamente conduzir por uma lógica de acontecimentos que em vão se procura ignorar.

Mas, se todos têm algo de filosófico, somente uns poucos merecem o título e a designação de filósofos. É característica essencial do filósofo possuir uma curiosidade intelectual insaciável, que o leva a inquirir as realidades que ele tem diante de si, procurando explicações mais profundas além das aparências mais evidentes. É por isso que os medievais definiam a filosofia como a ciência das coisas por suas causas mais altas (scientia rerum per altissimas causas).

A atuação externa, o fato de ter discípulos e por meio deles influenciar a sociedade, é algo muito próprio do filósofo, mas já acidentalmente. A curiosidade intelectual insaciável é que constitui, no meu modo de ver,  a característica essencial do filósofo.

Nas suas lucubrações, o filósofo nem pode cair num ceticismo sistemático, como Descartes com sua dúvida universal, nem pode tomar uma atitude dogmática fechada a todos os novos conhecimentos. Nem pode ser relativista, nem pode cair num dogmatismo insano. Deve, pelo contrário, compreender que nem tudo é relativo, que existem, sim, verdades absolutas, mas muitas vezes erramos ao absolutizar como essencial o que é apenas secundário e opinativo. O bom senso nunca pode faltar ao verdadeiro filósofo. “In necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnia caritas” – esse é o velho e sábio princípio da Teologia católica; em tradução livre: nas coisas que são necessárias, haja unidade; nas que são opinativas, haja liberdade; e em tudo e acima de tudo, haja caridade.

A partir de certezas assentadas, o filósofo vai desdobrando seu pensamento por induções e/ou deduções. Nem sempre, porém, o filósofo pode dispor de certezas assentadas; muitas vezes ele precisa raciocinar a partir de hipóteses não demonstradas. A um espírito estritamente racionalista, raciocinar a partir de algo não demonstrado pode parecer uma sandice. Mas não é. Na verdade, o sistema de raciocinar por hipóteses permite ao espírito humano, partir de uma situação de incerteza, ir aferindo os dados, as informações, as realidades, até chegar a uma certeza.

Isto que vou dizer agora, não é filosofia, mas lembro que li, uma vez, num tratado de Teologia, que os Anjos raciocinam por hipóteses. São extremamente lúcidas as inteligências dos Anjos propriamente ditos, como também a dos anjos decaídos (os demônios não erram por falta de inteligência, mas pela perversidade de sua vontade). Não são inteligências infinitas, mas são inteligências argutíssimas, que praticamente não cometem erros de raciocínio desde que possuam premissas corretas.

Mas, quando faltam premissas (por exemplo, quando se trata de saber algo futuro, ou algo que dependa puramente do acaso, ou algo que depende do livre arbítrio humano, ou algo que dependa de uma intervenção ou um desígnio exclusivo de Deus), os Anjos não podem ter certeza, já que lhes faltam informações para basear essas certezas. Nesses casos, eles raciocinam por hipóteses e por cálculos de probabilidade. Mas não podem ter certeza de estarem chegando a uma conclusão certa.

Se os Anjos fazem isso, por que nós, homens, não faremos o mesmo? É por isso que julgo que o sistema de raciocinar levantando hipóteses é próprio do espírito humano, e jamais será superado. Levantar hipóteses já é parte do pensamento filosófico. A primeira etapa é formular um problema, a segunda é levantar uma ou algumas hipóteses para resolvê-lo, a terceira é verificar a hipótese (ou as várias hipóteses) até chegar a uma conclusão.

Imagine-se, por exemplo, um médico que chega ao doente. Ele conversa com o doente, pergunta o que ele está sentindo, ouve o relato que o doente faz do seu histórico, examina atentamente o doente. Diante desse quadro todo, ele levanta, vamos dizer, 5 hipóteses de possíveis doenças. Aí ele faz mais perguntas ao doente, de modo a esclarecer mais o quadro geral. Nesse interrogatório, ele já descarta, vamos dizer, 3 das 5 hipóteses, mas ainda fica na dúvida sobre as outras duas. Aí ele manda fazer exames clínicos e elimina mais uma hipótese, ao mesmo tempo em que confirma a outra. Pronto, ele chegou ao termo do processo de diagnóstico. Já tem certeza de qual é a doença do seu paciente. Só resta medicá-lo. Se o médico não levantasse hipóteses, ele nunca chegaria ao diagnóstico seguro. Em filosofia, nós procedemos (naturalmente com as devidas adaptações) por esse mesmo processo. E em matéria de estudos históricos, qualquer previsão do futuro, a partir de conhecimentos e informações do passado, há de ser, forçosamente, hipotética.

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

Frase a destacar: Nem sempre o filósofo pode dispor de certezas assentadas; muitas vezes ele precisa raciocinar a partir de hipóteses não demonstradas.

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