Acordar é preciso

José Renato Nalini

 

A superveniência de uma crise anunciada, pois a Covid-19 não é surpresa para quem estava atento aos prognósticos científicos, faz com que algumas providências evidenciem sua urgência. Uma delas, a forma de recrutamento para as carreiras jurídicas.

Esta República detentora de um estupendo número de Faculdades de Direito – sozinho, o Brasil supera a soma de todas as outras Escolas de formação jurídica no restante do planeta – continua a recrutar magistrados, promotores, procuradores, defensores, titulares das delegações extrajudiciais – mediante concurso público de provas e títulos.

A inspiração é saudável. Alia-se o mérito – só os melhores serão aprovados – à feição democrática: todos os bacharéis em ciência jurídica podem se habilitar ao certame.

Só que a estratégia de seleção prioriza a memorização de um acervo que não é só imenso, mas também crescente. Espera-se que o candidato conheça toda a legislação, a partir da ambiciosa Constituição da República em constante mutação, a integralidade da doutrina e a exuberante jurisprudência produzida pelos Tribunais.

A sistemática de realização dos testes segue o mesmo modelo: elege-se uma Comissão ad-hoc, só para aquele concurso. Procede-se a uma prova preambular, para um filtro que, presume-se, deixará de fora os despreparados. Depois provas escritas – no caso da Magistratura, dissertação e questões múltiplas sobre as disciplinas tradicionais, mais a elaboração de uma sentença cível e uma criminal. Em seguida os exames orais, testes psicológicos, aferição da vida pregressa e, finalmente, o anúncio dos escolhidos.

O concurso continua a ser atraente para um país em que mais de um milhão de advogados disputam o mercado e não se sabe o número dos que ainda não foram credenciados porque não ultrapassaram a barreira do Exame de Ordem. Mas a mesmice da praxe transferiu o encargo de prover tais funções estatais para os exitosos Cursinhos de Preparação.

São eles que municiam os milhares de candidatos de uma esmerada revisão do Bacharelado, onde nem sempre se treinou a capacidade mnemônica do aluno, mas também o ritual de um concurso público. Como se portar perante a Banca, suas inclinações, a partir da produção pretérita do examinador, a expectativa de comportamento que os que arguem costumam nutrir dos concorrentes.

Não se concebe que uma empresa privada entregue a seleção de seus CEOs a uma equipe ad-hoc. Ou seja: a não especialistas em RH, psicologia do trabalho, técnicos na ciência de encontrar a pessoa certa para o lugar determinado. Isso é missão de alta especialização, tanto que os melhores são chamados head-hunter, os caçadores das melhores cabeças.

Além disso, o mundo mudou. O ensino coimbrão deixa de ser o padrão, para incorporar aquilo que a contemporaneidade exige. O coronavírus e o confinamento vieram a evidenciar que a Justiça pode funcionar – e até melhor – servindo-se da via digital. Por que desperdiçar essa experiência, que permitiu a servidores e magistrados continuarem a produzir mas em suas casas, poupando o deslocamento que torna o trânsito no Brasil um caos exasperante?

Juízes, promotores, defensores, procuradores e delegatários extrajudiciais precisam mostrar habilidade em Direito Digital Aplicado, em e-comerce, em inteligência artificial, robótica, proteção de dados e tantas outras exigências postas pela Quarta Revolução Industrial e tendentes a serem a cada momento mais complexas.

A inovação jurídica não sobreviverá sem a inserção íntima com as tecnologias de informação e, mais do que isso, o profissional dessa área tem o desafio de resgatar o prestígio desgastado pela ineficiência, imprevisibilidade e lentidão.

Assim como a educação convencional negligenciou as competências socioemocionais para focar exclusivamente a capacidade cognitiva do educando, a seleção de quadros hábeis à concretização do justo na sociedade de risco deve investir em atributos hoje ignorados. Esses responsáveis pela arquitetura de pacificação e harmonia de que o mundo está sedento precisam ser éticos, sensatos, equilibrados, humildes, sensíveis e dotados de excepcional vontade de trabalhar.

Tais requisitos não entram na receita vigente, pois uma vez mais, prefere-se a forma, o procedimento, o ritual, com menosprezo da substância, do essencial, que é dotar a Justiça brasileira de seres humanos comprometidos com o dever de reduzir a carga de sofrimento que angustia todos aqueles que se vêm forçados a procurar o Judiciário.

Acordar para essa inadequação é serviço de que o CNJ deveria se incumbir com a possível brevidade. O conceito do Poder Judiciário só ganharia com isso.

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José Renato Nalini, advogado, integrou a Magistratura por 40 anos. Foi Corregedor Geral da Justiça e presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

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