Armando Alexandre dos Santos
Quem não conhece, pelo menos em linhas gerais, a história de Tristão e Isolda, lenda medieval de origem céltica, cujas primeiras versões escritas remontam ao século X, mas cujo texto mais divulgado provém já do século XII, no ciclo literário do trovadorismo?
A paixão adulterina nutrida por Tristão, um dos cavaleiros da Távola Redonda, e Isolda, a esposa do seu rei, está na origem, e ao mesmo tempo no centro do drama. Depois de muitas peripécias, o casal tem um fim trágico, com Tristão morrendo de dor porque lhe informaram falsamente que Isolda havia morrido, e esta morre de fato ao ver o cadáver do amado.
Em torno do enredo, inúmeras são as variantes, já que o relato original foi glosado durante séculos, com grande liberdade, em vários pontos da Europa, daí resultando uma variedade enorme de produções literárias por vezes com autores conhecidos, muitas vezes de origem anônima. Até na Divina Comédia se encontra uma repercussão da história, já que Tristão aparece no Inferno de Dante, sendo atormentado no seu segundo círculo, reservado à punição dos luxuriosos. Há pelo menos uma referência ao drama vivido por Tristão no famoso Cancioneiro da Biblioteca Nacional, que reproduz uma cantiga composta pelo rei D. Diniz de Portugal (+ 1325), no qual o rei-poeta afirma que amava tanto uma donzela que seu amor era por certo maior que o de Tristão por Isolda: “… quero-vos eu tal ben / Qual mayor poss´e o mui namorado / Tristan sey ben que non amou Iseu [Isolda] / quant´eu vos amo, esto certo sey eu…”
No teatro também houve diversas representações, mas de longe a mais conhecida universalmente é a ópera de Richard Wagner, encenada pela primeira vez em 1865. Igualmente no cinema é tema muito glosado, desde os tempos do cinema mudo, até bem mais recentemente, em 2006, com o filme Tristão & Isolda, dirigido por Ridley Scott e com a participação de James Franco e Sophia Myles.
Que pensar da trama de Tristão e Isolda, em si? Trata-se, tipicamente, de uma obra de “amour courtois” largamente divulgada pelos trovadores medievais, que encontraram guarida em muitas cortes europeias a partir do século XII, e aos quais a famosa rainha Eleonora de Aquitânia, mãe de Ricardo Coração-de-Leão, deu tanta proteção. Esses trovadores representavam na Idade Média uma visão laica e não religiosa, mundana e não eclesiástica, da vida, não propriamente por atacarem a Igreja Católica e seu predomínio em todas as áreas da cultura, mas por disseminarem uma mentalidade diferente, que correspondia a anseios que saíam fora do esquema austero da espiritualidade medieval.
O papel da literatura trovadoresca na mutação do espírito medieval e na descaracterização de instituições como a da cavalaria ainda precisa ser mais estudado. Na linha da História de Mentalidades, seria um ponto muito interessante a se aprofundar. Na minha tese de doutorado tratei de passagem desse assunto.
O texto medieval que conhecemos, de Tristão e Isolda, a respeito de cuja autoria e datação existem dúvidas e subsistem debates, na realidade é uma reescrita de uma antiga lenda proveniente da Escócia ou da Irlanda, se bem que, de um modo bastante impróprio, poderíamos dizer que “se naturalizou francesa”, ou mais especificamente provençal, da região da Provence, no sul da França. O fato é que foi a partir da França que sua celebridade se espalhou pelo mundo.
No meu modo de entender, por trás do drama está a transformação do amor num valor metafísico, num absoluto, que se contrapõe aos deveres de Tristão em relação ao seu rei, ao qual jurara fidelidade. Muito mais do que uma questão moral em torno do adultério, o que houve foi um abuso de confiança e uma quebra do pacto feudal, especialmente por parte de Tristão, mas também, em certo sentido, de Isolda. Parece-me que a história, como foi reproduzida no texto francês do século XII, sem dúvida põe em tela de juízo a moralidade vigente, mas o faz de modo mais notório ainda pondo em tela de julgamento a ordem institucional da própria sociedade temporal.
Em outros termos, o problema filosófico que está por trás do drama é saber o que deve ter precedência na escolha de um cavaleiro, o amor por uma dama ou a fidelidade ao seu rei. Por trás da resposta a essa questão existem duas diferentes cosmovisões. A segunda, era a força conservadora da Idade Média; a primeira rumaria para tudo o que veio depois e chegaria, séculos depois, ao romantismo.
Outro comentário ainda desejo fazer. O fato de ser o amor erigido a um valor absoluto passando por cima de todas as conveniências e convenções sociais, mais ainda, por cima de todas as convicções de ordem ética e moral, sem dúvida esteve subjacente em toda a literatura dos séculos XVIII e XIX. Um estudo interessante seria uma comparação – do ponto de vista psicológico e, também literário – de Tristão e Isolda, de um lado, e Hermann e Doroteia, de Goethe, de outro. Todo o mecanismo de atração e censura, todo o conflito interno que esteve presente em Tristão e Isolda se notam, embora de modo muito mais fulminante e abrasador, em Hermann e Doroteia.
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.
Frase a destacar: O problema filosófico que está por trás do drama é saber o que deve ter precedência na escolha de um cavaleiro, o amor por uma dama ou a fidelidade ao seu rei.