Mandatários e Mandantes: Como era para ser


Julio Vasques Filho

Sendo a incoerência a característica dominante de nossa democracia, abordar o tema proposto requer que nos baseemos em informações e reflexões de esclarecimento que tenham o respaldo de documentos incontestáveis… dentre os quais  nossa Constituição.  Mesmo assim, nossa democracia encontra-se em estagio tão avançado de deterioração que este texto provavelmente  provocará absurdas controversias; a ponto de ser  visto por muitos como uma peça de ficção.

Aquilo a que se chama de Democracia Representativa é hoje, mais do que nunca, apenas um expediente criado para servir ao objetivo de contornar as dificuldades inerentes ao regime de governo denominado Democracia; visto a partir de suas raízes como Democracia Direta. O uso de tal expediente dá origem à Democracia Semidireta. Quando a Constituição declara em seu Art. 1º que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente…;” são introduzidos na política brasileira a Democracia Semidireta e a figura do representante mandatário, em um novo formato, como “meio alternativo de ação política”, deixando claro, entretanto, que o exercício do poder político  é prerrogativa do povo.

Para qualquer cidadão, principalmente para os filiados a um partido político, o mandatário é então um recurso; um meio, como diz a Constituição; entendendo-se que dá-se o mandato quando alguém recebe poderes de um outorgante para, em nome deste, praticar atos ou administrar interesses, sendo a procuração o seu instrumento de outorga, que no caso da política é representado pelo voto. Embora não sendo, então, um elemento que pertença à essencia da democracia, mas, sim, um instrumento que, neste contexto, pode ser utilizado como opção, o mandatário desempenha papel fundamental na Democracia Semidireta; desde de que esteja claro principalmente para os mandantes outorgantes, e para ele próprio, qual é a sua função e de como ele deve desempenhá-la de acordo com a idéia de Democracia Semidireta proposta pela Constituição.

Então, para não ferir nossa Carta Mágna, 4 devem ser as funções de um mandatário: (1) A defesa das “cláusulas pétreas” de seu partido, assim definidas pela ideologia, princípios e valores que o identificam, quando estiverem estas em desacordo com propostas que estejam sendo discutidas  no parlamento; e somente neste caso agindo como ente político autônomo; (2) Em não sendo este o caso, o mandatário deve consultar o seu partido para cumprir o que for decidido por este; (3) a apresentação e defesa, no parlamento, de propostas de filiados que lhe forem encaminhadas por seu partido, após terem sido estas aprovadas pela maioria deles; (4) a apresentação e defesa, no parlamento, de propostas que, como qualquer filiado, tenha ele enviado ao seu partido, após terem sido estas aprovadas pela maioria de seus  filiados.  Como a Constituição confere a todo cidadão o direito de, como agente político integral, atuar politicamente, independentemente de ser ele filiado ou não a um partido, as 4 funções do mandatário, acima consideradas, se referem, mais especificamente, aos casos em que os outorgantes sejam filiados a partidos políticos.

As diferentes áreas de atuação política com as quais um mandatário estará envolvido podem ser classificadas, por exemplo, como as ligadas (1) diretamente ao cidadão (educação, saúde, segurança e assistência social);  (2) à melhoria e preservação das condições ambientais (rurais  e urbanas); (3) à produção, trabalho e economia; (4) à cultura e lazer; e (5) ao próprio desempenho dos setores da administração pública. É desnecessário dizer que o que se pode esperar do mandatário é que ele tenha não muito mais do que noções sobre tais áreas, visto que mesmo que seja um especialista em uma delas, não existe a possibilidade de que seja  capaz de conhecer a todas em profundidade.

Nas eleições de 2022 pouco mais de 156 milhões de eleitores estavam, como agentes políticos integrais, autorizados a outorgar mandatos a seus 594 instrumentos de ação política no Congresso Nacional: 513 deputados e 81 senadores; em uma proporção de mais de 263.000 outorgantes para cada mandatário (nos municípios e estados os outorgantes também são sempre maioria significativa). É razoável, então, imaginar que seja grande a possibilidade de que haja bem mais especialistas nas áreas de atuação política entre os outorgantes do que entre os mandatários. Considerando-se ainda que existem muitos instrumentos constitucionais e infraconstitucionais, sem contar os que podem ser criados democraticamente pelo próprio povo, que lhe permitem atuar nas áreas de responsabilidade dos 3 poderes da república, fica, pois, mais do que evidente que razões não faltam para que caiba aos outorgantes, como agentes políticos integrais, mais do que a seus instrumentos, os mandatários, a maior responsabilidade e obrigação de identificar problemas  e questões  de natureza política, analisá-las, e apresentar propostas de soluções que possam beneficiar a sociedade; ou seja  – “de governar”.

Embora o outorgante seja a figura principal de um partido, isso não significa, entretanto, que se deva menosprezar a figura do mandatário. Como filiado que é, ele será sempre, simultaneamente, mandatário e mandante, só que, como tal, o real e imprescindível valor de seu trabalho está mais em ser ele dotado de vocação e atributos pessoais para a execução eficiente do mandato; que façam com que ele se destaque como elemento singular por sua capacidade de fazer vingar no parlamento, e no exercício da política de um modo geral, a presença, as iniciativas, intervenções, participações e ações de seu partido. Para isso, o bom mandatário ao ocupar a tribuna do parlamento, ou se comunicar com o público ou com os meios de comunicação, deverá, além de ser possuidor de magnetismo pessoal e boa dicção, saber ser persuasivo, utilizando com eficiência, os recursos da oratória e da comunicação: a retórica, as funções da linguagem, a gestualidade elegante, e a empatia.

Para finalizar, parece não ficar dúvida de que não é, portanto, apenas a Constituição, como também a análise e interpretação racional dos dados, conceitos e informações aqui abordadas que recomendam que a dinâmica de trabalho do sistema partido-mandante-mandatário seja feita de conformidade com as 4 funções do mandatário vistas acima. Para que assim seja, é imprescindível a existência de partidos políticos sérios e verdadeiros para que a Democracia Semidireta seja praticada corretamente; com seus mandatários desempenhando o papel de “advogados” (como metáfora) do seu grupo de filiados – “sendo este seu elemento essencial e soberano, de onde todo seu poder emana e de onde brotam as vozes que orientam suas decisões e comandam suas ações”. A realidade atual torna desnecessário dizer que não há, pois, por enquanto, Democracia Semidireta no Brasil e que nada dá certo quando feito de forma errada.

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Julio Vasques Filho, professor, doutor aposentado da ESALQ-USP

 

 

 

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