Armando Alexandre dos Santos
A dúvida sistemática como requisito básico para o pensamento filosófico se tornou geralmente aceita, a partir de Descartes. A necessidade dessa dúvida sistemática, afirmada com tanta segurança, deixa muitas dúvidas no meu espírito… para dizer pouco. Sou muito mais tendente a pensar que sem algumas certezas fundamentais inabaláveis não pode sustentar-se nenhum sistema filosófico.
A dúvida sistemática é alimentada pelo senso crítico, o qual é, sem dúvida, característico do ser humano plenamente racional. Ou seja, do homem ou da mulher adultos, ou pelo menos suficientemente amadurecidos para exercerem validamente essa crítica. Na infância, e sobretudo na tenra infância, o conhecimento é adquirido praticamente sem críticas, sem dúvidas. Para a criança, tudo quanto ela vê e apreende lhe parece normal, natural. Só mais tarde é que ela aprende a fazer comparações, julgamentos, censuras.
Se a dúvida sistemática é indissociável do pensamento filosófico e a criança é incapaz de duvidar sistematicamente, conclui-se que a criança é incapaz de qualquer filosofia.
Será mesmo?
Parece-me que não, porque muitas vezes vemos crianças formularem verdades espantosamente verdadeiras, com uma precisão e uma beleza que nós, adultos, gostaríamos de possuir e não possuímos mais. As crianças não duvidam nem questionam, tudo nelas é certeza, e no entanto elas pensam, elas raciocinam e por vezes elas chegam a conclusões que nós, adultos, não seríamos capazes de formular.
Então, eu pergunto: a dúvida universal e sistemática será mesmo conditio sine qua non para o pensamento filosófico? Essa é uma pergunta bem “heterodoxa”, reconheço… Quando fiz a faculdade de Filosofia, lembro que questionei a necessidade dessa dúvida sistemática em fórum, e quase me queimaram.
A profa. Marilena Chauí é filosoficamente “ortodoxa”. Apaixonadamente ortodoxa. Ela chega a ensinar que é indispensável se despir de toda e qualquer certeza para começar a pensar filosoficamente. Ela sustenta essa afirmação com a mesma paixão com que manifestou, em vídeo que viralizou na internet, seu ódio à classe média…
Mas será realmente indispensável, como pensa a Profa. Chauí, abster-se de toda e qualquer certeza, para somente então se adotar uma “atitude filosófica”?
Quando Sócrates dizia “só sei que nada sei”, com essa afirmação ele não estava enunciando uma certeza? Quando Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, tantos outros filósofos ao longo da História – e até mesmo Karl Marx! – raciocinaram logicamente a partir de premissas que tomaram como certas, estariam raciocinando antifilosoficamente?
Se o filósofo deve sistematicamente duvidar de tudo, por que ele não pode duvidar do “dogma” de que a dúvida sistemática é imprescindível para a Filosofia?
Voltando às crianças: tenho uma prima que é psicóloga, especializada em Psicologia Infantil. Ela é muito inteligente e, como dispõe de um campo de observação privilegiado, no dia-a-dia do seu consultório, tem sempre um repertório inesgotável de casos interessantes a reportar. Ainda acho que ela devia escrever um livro sobre esse tema. É incrível a profundidade da sabedoria infantil! Será que esse tesouro não faz parte da Filosofia humana lato sensu, só porque não assume, habitualmente, a forma interrogativa e questionadora que se convencionou considerar como indissociável da atitude filosófica stricto sensu?
Afirma Gramsci que os homens todos são, de certa forma, filósofos. Concordo com ele nesse ponto, e vou até mais longe: penso que isso se dá inclusive com as crianças e talvez até de modo paradigmático.
De fato, é entre crianças que, às vezes, nos surpreendemos com a profundidade do pensamento filosófico latente em manifestações ingênuas. E são crianças que ainda não têm senso crítico, nada questionam, de nada duvidam. Seu mundo é só de certezas, e de certezas evidentes. O pai é um herói, a mãe é uma fada, a “tia” da escolinha é um poço de ciência que tudo sabe etc. etc. De onde vem essa segurança, de onde vêm as certezas do espírito infantil? Quais são as matrizes primeiras do seu pensamento, de onde procedem elas?
Sou tendente a pensar “heterodoxamente” que as crianças têm matrizes de espírito filosófico muito autênticas e profundas, as quais nós, adultos, numa falsa maturação de espírito aprendemos a desaprender…
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.