Recall

Nilson da Silva Júnior

 

Tenho muitas preocupações com o cristianismo contemporâneo. Não é possível ver igrejas cheias e uma sociedade vazia de justiça, simpatia e consciência social. Tenho impressão que isso se perdeu, desprendeu-se de seus princípios, deixou-se levar pelo corriqueiro, secularizou-se. Não é pra menos, as bases dessa religião que temos, fundadas por Constantino, foram construídas sobre tijolos de interesse político, havia necessidade de legalizar, atrair e agregar um movimento que poderia dividir o império se não fosse dominado. Mas institucionalizar, o que representaria um ganho, restringiu, reduziu, conteve a grandeza do cristianismo. O vento do Espírito que soprava durante a subversão perdeu a força, foi apequenado e reduzido a normas e regras. Ao invés de potencializar, amarrou o sentido de um Cristo libertário, emancipatório, defensor da igualdade, do direito, da vida. A religião saiu do rumo e se adequou à vontade de uns e outros que se utilizaram da mística para dominar um povo até então marginal, mas livre.

Hoje, contraditoriamente, temos uma religiosidade descompassada com o que se pode imaginar de Deus, mais parece querer medir forças com Ele. A começar dos líderes que se colocam como senhores do povo, pastores que requerem a última palavra em tudo, determinando leis, regulamentos e posturas e, em nome do Poderoso, exigem, submetem e encabrestam seus seguidores. Estou cansado de vê-los na TV explicando o que o Senhor dos Senhores quer, o que sente, o que gosta, como se alguém, mortal e empobrecido pela sua humanidade, pudesse ou soubesse explicar os pensamentos, vontades e desejos do Eterno, transcendente e todo mistério. Não há como aceitar tanta pretensão. Por outro lado, homens e mulheres que, dominados por seus guias, supõe controlar o Insondável, reivindicar Dele, exigir, fazer trocas, suborná-lo. Perdeu-se a dimensão da grandeza dAquele que É. Não há mais relação com O Senhor, mas com um serviçal que depende de explicações insistentes para satisfazer a mesquinhez das pessoas. Há quem fique horas orientando o Santíssimo no que deve fazer, dando detalhes do que acontece, tecendo comentários, como se o Onipotente não tivesse onisciência e soberania sobre tudo e todos.

Com isso, a religião também se distorceu por conta do “poder”. A religiosidade se desligou de ensinamentos como: “dá a quem te pede”, “se teu irmão tiver fome, dá-lhe de comer”, “se alguém te ferir a face direita, volta-lhe também a outra”. Não, isso está no arquivo morto da religião. Hoje, o importante é ter, mais que repartir, que ceder, compreender. Assim as pessoas se relacionam com Deus, interessadas, somente em serem capazes de comprar, mandar e decidir. Querem holofotes. As igrejas estão repletas de holofotes. Você pode! Esta é a provocação de muitas igrejas. Por isso se formam multidões, centenas, milhares, milhões. Por isso os carnês, as campanhas, o engano e o enriquecimento. Ambição pregada, aceita e vivida. O Poder atrai mais que a Graça, mais que o privilégio de reconstruir-se a cada dia, arrepender-se, perdoar, perdoar-se. Não há mais crescimento pessoal, valorização da bondade, da partilha, da fraternidade. Dane-se a ética, a honestidade, a integridade. O importante é poder, se possível, mais que os outros, esta é a regra desse “novo evangelho”, distante do verdadeiro significado da palavra “religião” (do latim, religare), relacionada ao respeito pelo sagrado e, sobretudo, ao propósito de religar os valores do Divino ao cotidiano das pessoas, reatar a humanidade a Deus através da fraternidade e da convivência.

Diante disso, como fica a vida? Há alguma possibilidade dessa “liturgia” melhorar a postura de alguém? Não. O dia a dia continua recheado de ambição, desonestidade e orgulho. Numa parcela expressiva dos cristãos atuais, não há conduta diferenciada, amizade verdadeira, muito menos, compaixão, misericórdia, promoção da paz, amor. A palavra continua podre, chula, fétida, as intenções, torpes. É uma crença que não enobrece a pessoa em nada, mantém a mesma índole no coração e uma mente ainda mais cobiçosa.

De maneira ampla, resguardadas algumas exceções, o cristianismo está manco, trôpego, porque tenta existir sem seus valores essenciais. Por isso, fé, religiosidade, Igreja, precisam urgentemente de um Recall, de revisão, manutenção, que lhes acerte os ponteiros, os parafusos e lhes coloquem novamente no rumo. Ser cristão é ser revolucionário, nadar contra a maré e, se preciso, lutar por vida, dignidade e respeito. Com esse tipo de “religião”, haverá cada vez mais pobreza, mais injustiça e miséria – de todas as formas que se possa ter. Se o exemplo de Cristo não nos questiona em direção a tudo isso, então não temos o evangelho de Cristo, temos instituição, normas, estereótipos, padrões, que não são dEle. O mundo só muda se o evangelho mudar. Não adianta reclamar, adianta reinventar, reconciliar e reaproximar o cristianismo do Jesus Cristo simples, lúcido, consciente, filho de carpinteiro, anunciador do Reino de Deus, nascido em Nazaré, que disse: “Vocês são o sal da terra. Mas se o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens” (Evangelho segundo Mateus 5:13).

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Rev. Nilson da Silva Júnior, pastor e professor; [email protected]

 

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