Deu ou não deu certo?

Armando Alexandre dos Santos

 

Meu artigo de hoje é bem atípico. Nele reproduzo, ipsis litteris, um artigo que escrevi em junho de 1990, há quase 35 anos, para um jornal português do qual eu era, na ocasião, correspondente no Brasil. Seu título: “Dará ou não dará certo?”. Encontrei-o numa das pastas antigas do meu HD e tive a curiosidade de relê-lo. Embora o contexto político e as circunstâncias fossem bem diversas das atuais, muitos dos problemas de hoje já estavam presentes (e bem presentes!) naquele tempo em que Fernando Collor de Mello estava no terceiro mês de seu governo, iniciado, como se lembrarão os leitores mais antigos, com o espetacular e traumático confisco das cadernetas de poupança. Era ao plano de combate à inflação encetado pelo governo que se referia a pergunta do título.

Passo à transcrição do artigo, deixando ao leitor a tarefa de conferir se e em que medida deu ou não deu certo:

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“Todos sabem – não é preciso ir a Salamanca, ou mais modernamente a alguma prestigiosa Universidade norte-americana, para saber isso – que no Brasil a principal causa da inflação é o excesso de gastos do Poder público. Com cerca de 70% da economia nas mãos do Estado, com um funcionalismo faraônico, bem garantido por estatutos legais privilegiados e em geral bem remunerado, com mais de uma centena de empresas estatais em via de regra mal-administradas e deficitárias, com um sistema tributário muito voraz mas insuficiente para pagar as contas, nada mais fácil do que imprimir papel moeda…

Qualquer combate sério à inflação – indo às suas últimas causas – deveria passar normalmente pela reprivatização de muitas empresas, pela contenção dos gastos públicos, pela diminuição da interferência do Estado na Economia. De resto, bastaria aplicar o tradicional Princípio de Subsidiariedade, magistralmente ensinado por Pio XI na “Quadragesimo Anno” e desdobrado por João XXIII na “Mater et Magistra”, e coibir certos abusos e desequilíbrios que naturalmente sempre haveriam de surgir – e as coisas andariam por si. “O Estado é o pior dos patrões”, costuma-se dizer no Brasil. E com razão.

Quando assumiu o poder no último dia 15 de março, o Presidente Collor de Mello encontrou o país com uma inflação na ordem de 84% ao mês. Já se estava, pois, à beira da hiper-inflação e na rota do caos total. O novo Governo principiou por um choque econômico de muito grande impacto. Não entro aqui nos pormenores dele porque decerto, em suas linhas gerais, já serão conhecidos dos leitores de “A Ordem”. Digo apenas que mexeu a fundo com a vida de muitíssimos particulares, fez perigar a sobrevivência de muitas empresas, e teve como consequência uma diminuição da produção e um aumento das taxas de desemprego. As esquerdas demagógicas por certo exageram muito esse aumento, no seu afã de atiçarem a agitação social e insuflarem greves. Mas que aumentou em alguma medida o desemprego e se está fazendo ver o espectro da recessão, ninguém pode negar.

Entendia-se que essa era a parte do sacrifício que cabia aos particulares e às empresas privadas. Era um primeiro passo, sem o qual por sua mera dinâmica a espiral inflacionária jamais se deteria. A parte do Governo, o sacrifício maior que competiria a este fazer, viria a seu tempo. Viria até com prazo definido. Pois o novo Governo logo tornou públicas uma série de metas ousadas que, se atingidas efetivamente dentro dos prazos fixados, pareciam – a leigos na matéria (como o que escreve estas linhas) e também a muitos economistas liberais e conservadores – que poderiam realmente solucionar o problema da inflação. As potencialidades e as riquezas mais ou menos inesgotáveis, deste Brasil que os portugueses nos legaram, fariam o resto.

Foi, pois, num clima de otimismo generalizado que o “Plano Brasil Novo” começou a ser aplicado. Otimismo que se manteve e em alguma medida ainda se mantém. Mas já começam a aparecer nuvens escuras no horizonte. Nuvens que fazem recear que o próprio Governo esteja perdendo o controle da situação.

Não me estenderei aqui sobre o número elevadíssimo de atos exarados pelo Governo em matéria econômica; segundo a revista “Veja”, de São Paulo, desde a adoção do Plano, no dia 17 de março, até 23 de maio haviam sido publicadas no “Diário Oficial” da União nada menos que 348 atos modificando as normas vigentes no setor financeiro, numa média de oito a cada dia útil. Tampouco me estenderei sobre certa insegurança e certa confusão que parecem por vezes constituir a nota tônica entre a equipe econômica que rege os destinos do país. Com frequência atos administrativos publicados pelo “Diário Oficial” são revogados logo nos dias imediatos, por se revelarem de todo impraticáveis, por conterem erros técnicos ou até por ferirem flagrantemente a Constituição. Tudo isso, naturalmente, não depõe a favor da confiabilidade e da maturidade da equipe econômica do Governo. O Presidente Collor chegou a proibir formalmente a publicação de novos atos sem o placet  prévio do Ministro da Justiça.

Não é para esses aspectos colaterais e secundários que gostaria de chamar a atenção do leitor. Mas para um outro, de importância muito maior. Mais concretamente, para o fato de o Governo não parecer estar pagando a sua quota no sacrifício que o Brasil, como um todo, faria para debelar a inflação. Afora algumas medidas de grande alcance publicitário (como ter leiloado cerca de 4500 veículos oficiais e nove mansões anteriormente ocupadas por altos funcionários do Governo) pouco ou nada parece ter efetivamente realizado o moloc estatal para reduzir o déficit público. Ainda são metas a realizar, por exemplo, a venda em leilão de mais de 9000 apartamentos que pertencem da União, bem como a demissão de aproximadamente 360 mil funcionários públicos supérfluos. Sobretudo ainda são promessas por cumprir a efetiva privatização das grandes estatais e a diminuição da intervenção do Estado na esfera da economia. Essas metas não se realizaram ainda, talvez não por falta de vontade do Governo, mas devido a entraves burocráticos, a dificuldades legais, a fortes “lobbies” contrários.

Terá o Governo força política suficiente para superar essas dificuldades e corresponder assim à expectativa da população? É uma pergunta que muitos fazem, e que alguns, mais pessimistas, já respondem pela negativa. Sem ser economista e sem ser especialista em análises políticas, de muito pouco vale o que penso a respeito. Mas uma vez que devo, neste fim de artigo, manifestar uma opinião, digo, um tanto acacianamente, que o Plano pode dar certo como pode não dar. Em outras palavras, ainda me parece prematuro afirmar, como alguns fazem, que já fracassou o Plano. Mas também me parece muito temerário afirmar, como alguns ainda afirmam, que ele infalivelmente dará certo…” [até aqui, o artigo de 1990]

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

Frase a destacar: Foi num clima de otimismo generalizado que o “Plano Brasil Novo” começou a ser aplicado.

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