Achados do Arquivo – Por quem os sinos dobram? ou… os sinos devem dobrar?

Fotografia da inauguração do sistema de abastecimento de água em Piracicaba, em 1887, no jardim público da Matriz – ao fundo, a Igreja de Santo Antonio (e a torre com o sino) e a atual praça José Bonifácio. Imagem preservada pelo Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara.

 

No final do Século 19, Câmara impôs limite aos badalares de sino da Igreja, sob a justificativa de atender o sossego público na cidade

“Nunca pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”. A frase do poema do inglês John Donne, escrito em 1624, talvez não seja amplamente entendida nos dias atuais, já que, séculos depois, a expressão “dobre do sino” são seja familiar a todos. Então, antes de apresentar o destaque da série Achados do Arquivo desta semana, vale um pequeno preâmbulo explicativo.

Os sinos das Igrejas sempre tiveram um papel na sociedade. O badalar deles é que que anunciavam os horários, as missas, os eventos, os nascimentos e também as mortes. O dobre de sinos – ou dobre de finados – é o ato de soar os sinos em decorrência do falecimento de alguém. Os sinos comunicam, alertam e avisam, cumprindo assim um papel social, quase ritualístico. Mas o soar dos sinos também, às vezes, incomodam. Pelo menos é o que parece.

No acervo da Câmara Municipal de Piracicaba, em um livro de registro das normativas promulgadas pela edilidade, está descrita a “Lei sobre dobres de sinos”, datada de 7 de dezembro de 1896:

 

“Art.1º – São proibidos dobres de sinos nas Igrejas desta cidade. O infrator ou responsável pela infração será multado em 20#000.

 

Art.2º – São permitidos os toques de sinal para festividades e cerimonias religiosas, não podendo cada toque durar mais de trinta segundos, nem serem repetidos maios de duas vezes na hora, nem mais de seis vezes no dia” (em transcrição livre)

 

Tem-se aqui um claro embate entre uma tradição social e religiosa com outros princípios que regem o convívio em sociedade, como o sossego público. Mas a iniciativa do Poder Legislativo teve outros desdobramentos – e isso aconteceu já no Século 20. Pelo menos é o que demonstra uma nota datilografada e colocada no final da mesma normativa:

 

“Parecer nº32, de 1905 – O padre José Rodrigues Sechler, vigário de Piracicaba, recorreu da lei de 7 de dezembro de 1896, da Câmara Municipal que proibira os dobre de sino a finados e reduzira ao tempo de trinta segundos apenas os repique dos sinos. Fundamentou o recorrente a provocação nos textos do art. 72 #72 3 e 7 da Constituição da República que permitem o exercício público e livre dos cultos religiosos, e declaram que nenhum culto terá relações de dependência com o governo da União e dos Estados. Não há dúvida de que essas disposições constitucionais asseguram a mais plena liberdade no exercício dos cultos religiosos. Porém não há direito, por mais absoluto que pareça, que não sofre em seu exercício as limitações inerentes à coexistência social e ao interesse comum. Conseguintemente, se pelo uso indevido ou imoderado de atos do culto externo de qualquer profissão religiosa perturbar-se o sossego ou a comodidade publica, o Estado terá o direito de proibir, em proveito geral essas demasias. A Câmara Municipal não teve bastante critério na aplicação deste princípio, pois que em vez de impedir o abuso no tique de sinos, praticando assim um ato concernente à policia e ao bem do município, conforme a faculdade que lhe concede o art. 53 # último da lei de 13 de novembro de 1891, proibiu que os sinos das Igrejas de Piracicaba dobrassem a finados, e reduziu os repiques de sinos ao tempo de trinta segundos, o que foi quase o mesmo que proibi-los. Isto posto, parece à Comissão de Recursos Municipais que a Câmara Municipal de Piracicaba procedeu, no caso ocorrente, sem respeito às citadas disposições da Constituição Federal, pelo que oferece à consideração do Senado a seguinte: – Resolução n.4 de 1905 – Fica sem nenhum efeito o ato da Câmara Municipal de Piracicaba que proibiu nas Igrejas os dobres de sino a finados e reduziu a trinta segundos o tempo dos repiques de sino. Sala das comissão dos Senado, em 16 de agosto de 1905.”

 

É uma transcrição longa, mas colocada na integra para bem demonstrar os argumentos utilizados pela comissão no parecer, e a dificuldade de se balizar direitos e liberdades. Não foram encontrados nos documentos da Câmara mais registros que deem indícios claros dos próximos capítulos desta história.

Mas algo é notável. A questão não está limitada ao município piracicabano, nem ao século passado. Uma breve pesquisa pelas normativas mostram leis brasileiras que versam sobre o tema, como a Lei Municipal de São Paulo 11.804/1995, que dispõe sobre avaliação da aceitabilidade de ruídos na cidade.

Em uma batalha entre a tradição e o sossego, os sinos foram protagonistas. A pergunta deixa de ser “por quem os sinos dobram?” e passa a ser “os sinos devem dobrar?”.

 

“O sino dobra a finados.

Faz tanta pena a dobrar!

Não é pelos teus pecados

Que estão vivos a saltar”

(Fernando Pessoas)

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