O mal do século

Almir Pazzianotto Pinto

 

Controlada a pandemia da Covid-19, graças à descoberta da vacina e campanhas de vacinação em massa, nos defrontamos com o agravamento da dengue, insidiosa doença transmitida por mosquito vindo do Egito, para complicar ainda mais os problemas sociais do Brasil.

De tempos em tempos a humanidade enfrenta desafios de saúde que se sucedem e se renovam. Apenas países desenvolvidos, como Holanda e Finlândia, dispõem de serviços públicos à altura das necessidades. Não é o caso do Brasil. Sou leigo na matéria. O pouco que sei resulta da experiência de vida, daquilo que ouvia em Capivari, minha cidade natal, do que leio na imprensa e das atividades como advogado ou juiz.

Em minha infância – e já se passaram várias décadas – tomava ciência de casos de tuberculose, doença altamente contagiosa. Em determinada família, quando se sabia de alguém tuberculoso, criava-se ao redor uma espécie de cordão de isolamento, pelo temor do contágio. A casa de morada era fechada e pulverizados os cômodos com cal virgem. Situação similar ocorria com a hanseníase, conhecida como lepra. O leproso não era tratado, mas evitado e condenado a viver isolado em leprosário.

Comuns eram casos de crianças vítimas de crupe, doença que atingia a laringe, podendo causar a morte por asfixia. Basta a visita ao cemitério local para se observar o elevado número de túmulos antigos, denunciado as altas taxas de mortalidade infantil durante boa parte do século passado. Tão temida quanto a crupe era a poliomielite, até ser descoberta a vacina e intensificadas as campanhas de vacinação. Em menor número, naquela época, eram os casos conhecidos de câncer, embora todos mortais. Doenças como Alzheimer ou Mal de Parkinson não se conheciam. O idoso demente levava o apelido de caduco, e assim continuava até falecer.

Creio que o intenso uso de modernos aparelhos eletrônicos deu causa ao aparecimento da Lesão por Esforço Repetitivo (Ler-Idort). Entre digitadores a doença causava numerosas vítimas. Antigas, lentas e pesadas máquinas de escrever jamais foram acusadas de causarem danos à saúde. A velocidade do trabalho era controlada pela habilidade do datilógrafo. O Ler-Idort se tornou conhecido na década de 1980, se não estou enganado. Quando empregadores e empregados passaram a cuidar do problema, com diagnósticos e medicamentos corretos, intervalos obrigatórios e exercícios específicos, aparentemente o problema ficou sob controle.

A depressão parece-me doença recente. Resultaria de conjunto de condições pessoais, associadas ao estado negativo de espírito, sendo semelhante ao transtorno bipolar. Como leigo não avançarei no tema, da alçada de médicos, psiquiatras e psicólogos especializados. Mais recente me parece o caso da Síndrome de Burnout.

Na Justiça do Trabalho surgem as primeiras reclamações trabalhistas ajuizadas por empregados que se queixam de serem vítimas do Burnout, para pedir a condenação de ex-empregador ao pagamento de indenizações por danos morais e materiais, decorrentes do vínculo de trabalho.

Alguns estudos revelam que a Síndrome de Burnout (em tradução livre, chama apagada) não seria necessariamente uma doença, mas resultado de alteração psicológica provocada por fatores relacionados às condições de vida, ao cansaço, ao desânimo, nem sempre pelo trabalho. Atletas de alto nível, por exemplo, submetidos desde a infância ou adolescência, a incessantes e pesados exercícios físicos, como preparação para disputas nacionais ou internacionais, podem alcançar tal estado de tensão, expectativa e exaustão, que não raro são atacados pela Síndrome de Burnout. A recuperação dependeria, segundo alguns especialistas, da pessoa doente, da solidariedade da família e de terceiros.

As exigências da vida moderna afetam de forma diferente as pessoas. Em grandes capitais, como é o caso típico de São Paulo, a sobrevivência exige esforços superiores aos limites da mulher e do homem comum. Os problemas começam pela manhã com o trânsito e a necessidade de observar o horário de entrada em serviço, mas não terminam após o expediente normal, dadas as dificuldades de voltar para a casa, ou a imperiosa necessidade de fazer algum curso de atualização profissional no horário turno. Insucesso profissional, alimentação de rua, falta de segurança e aborrecimentos  familiares contribuem para agravar o desânimo e o cansaço.

A vida simples do homem do interior, já não existe, salvo nas zonas rurais e pequenas cidades. A Síndrome de Burnout é a doença do século 21. Responsabilizar o empregador (cujos problemas com impostos, empréstimos, juros, concorrência interna e externa, exigências das leis trabalhistas e administração da folha de salários e encargos, são conhecidos) é dar ao complexo problema solução simples, porém errada.

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Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi ministro do Trabalho, presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), autor de várias obras

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