Quarentena tem dessas coisas, é preciso que se diga. A quarentena vem desafiando até os que sempre se julgaram mais fortes. Ficar em casa, para a maioria, nunca foi tão difícil. Sei de pais que nunca viram tanto seus filhos na vida como agora. A proximidade forçosa e o convívio obrigatório entre quatro paredes vêm despertando, também, sentimentos familiares até então camuflados e descortinando relações e reações inesperadas. Sei de um pai que percebeu que o filho de dez anos já fala – sim, é claro, o filho já fala há muitos anos, mas é que esse pai ainda não havia dado conta disso. Outro amigo descobriu que a filha tem uma namorada super bonita e bacana – a qual ele agora conheceu, finalmente, por uma chamada de vídeo pelo celular dela. Um amigo professor, por sua vez, sugeriu aos alunos que filmassem os pais em casa e mandassem os vídeos para o sinistro da educação – ora, se o sinistro havia sugerido que os alunos filmassem aos professores e os denunciassem quando esses lhe provocassem o menor desconforto pedagógico a ferir a moral ilibada das famílias de bem, nada me parece mais justo – não é? E nada de se enervar com a prole, minha gente. Tenham fé!
Um dia a quarentena vai acabar e a vida de cada um poderá, quem sabe, voltar ser triste e solitária como antes – mantendo-se assim a tranquilidade soberana das casas com os filhos na escola. Como não tenho filhos, minha solidão de quarentena é ainda maior. Por sorte minha e azar dela, eu e minha consorte (ou seria mais justo chamá-la, coitada – depois de me aguentar ao longo desses dois meses de claustro – de minha “sensorte”) vivemos o nosso idílio lírico-religioso como dois abnegados ermitões. A quarentena tem dessas coisas – e a vida é difícil para quem ainda acha que a Terra é redonda e que a OMS não é uma organização comunista a serviço da China. Por isso, por ainda tenazmente acreditarmos na ciência, temos nos obrigado a ficar em casa com se fôssemos carmelitas descalças – trabalhando (mas de chinelos) horas a fio graças aos engenhos tecnológicos que permitem ao capitalismo sugar a gente até o fim dos tempos. Aliás, nunca pense que teríamos todos de trabalhar tanto mesmo ao sabor mais sublime do fim do mundo. Que fique sossegado o deus capital: pode a peste raivar lá fora que nós, a humanidade trabalhadora, morreremos fazendo o que nos cabe na engrenagem do sistema. Viva a economia! Morreremos passando nota fiscal de nossa mediocridade.
Chorar também tem sido uma constante após meses de reclusão – e tem gente que acha que os detentos, nas cadeias, vivem bem e são “privilegiados”. Sinceramente, eu nunca imaginei que ficar em casa e não poder encontrar o mundo por aí me afetaria tanto. Comecei a dar sinais de que me transformava num ser choroso num dia em que cruelmente deixei derramar um pouco leite fervente sobre o fogão. Que cena comovedora. Assim que o leite caiu sobre a grelhinha do fogão me vi vertido em lágrimas como se estivesse assistindo o final de “A Dama das Camélias”. Chorei copiosamente por cinco minutos sem ao menos conseguir desligar o fogo. Quarentena tem dessas coisas. Depois, chorei também de forma constrangedora quando o entregador de pizzas me disse que não tinha troco. Foi lindo. Nesse caso, percebi que ele também se comoveu – talvez ele também não andasse, como eu, saindo muito de casa ou tivesse apenas chorado comigo por piedade. Sóbrio e recomposto, no entanto, ele se despediu de mim prometendo jamais esquecer o troco novamente – jamais! E partiu me devendo a enorme quantia de cinco reais.
Na quarentena, acho que o choro passa a ser contagiante também (seria um novo tipo de vírus?). Percebi que minha vizinha também começou a chorar por esses dias – pude acompanhar daqui de casa. Como ela está grávida, seu choro é ainda mais sentido do que o meu. Então, chorei ao ouvi-la chorando. Ela estava comovida com qualquer coisa de grande monta, algo assim como uma ligação do entregador de gás pedindo desculpas pelo atraso na entrega. Choro super justificável, compreendi logo. Por fim, quando o entregador chegou, comecei também a chorar e, se pudesse e se não fosse contra o isolamento, eu teria ido até a casa dela para abraçá-la e consolá-la, dizendo a ela que a vida é assim mesmo – e que uma hora o gás da gente acaba e que, quando menos esperamos, vem outro gás a nos encher de novo a vida.
Quarentena tem dessas coisas. É preciso que se diga sem se envergonhar. Não bastassem as atrocidades que assolam o mundo e o país – como o racismo, o fascismo, a misoginia, a insensibilidade dos desgovernantes, o ataque à democracia, a destruição do meio ambiente – agora temos também de chorar pelo leite derramado e por estarmos, às vezes, sem gás. Paciência. Quarentena tem dessas coisas. Bom é saber que uma hora ou outra tudo voltará, com choro ou sem choro, à normalidade sublime de antes.