Entrevista – ‘Aquilo que aprendi na faculdade está na história da medicina’

Aos 100 anos de idade, o médico Legardeth Consolgmano mostra todo seu carisma e porque é respeitado pela conduta ética nesta entrevista a João Umberto Nassif

 

O Dr. Legardeth Consolmagno é um dos profissionais para quem o juramento de Hipócrates deve ter sido mais uma etapa da solenidade de formatura. Altamente carismático, conquista de imediato a confiança do interlocutor. Seja paciente ou não. Respeitado pela conduta ética e estatura moral, tem forte atuação no meio social em que convive. É do tipo de pessoa que não vê a vida como um espectador! Ele participa em toda causa que julga poder colaborar. Muitos ouvintes ligaram para agradecer, confraternizarem-se, e mostraram seu apreço pelo médico Dr. Legardeth, inclusive narrando passagens em que foram atendidos pelo dedicado profissional da saúde.

 

Qual é a origem do nome Legardeth?
O meu dizia que quando estava para nascer, ele leu em uma revista que já não existe mais há muito tempo, chamada “Eu Sei Tudo”. (N.J.: Revista ilustrada “Eu Sei Tudo”, editada pela Companhia Editora Americana entre 1917 e 1958, com enfoque sobre ciência, arte, literatura e história). Nessa revista ele leu uma história onde havia um personagem chamado Legardeth, o qual ele passou a admirar. Era um romance em série, escrito por capítulos em cada exemplar da revista. O próprio Machado de Assis chegou a publicar livros nessas condições: em séries, em periódicos da época. Quando já estava no curso pré-médico em Curitiba, perguntei ao professor Mansur Guerius que era um lingüista, inclusive havia publicado várias gramáticas de línguas indígenas, caigangues e guarani daquelas regiões do sul. Ele era nosso professor de português no pré-médico. Disse-me que iria procurar a origem do nome Legardeth. Quando eu já estava para me formar fui procurá-lo para ver se havia encontrado alguma referencia a Legardeth. Então, ele me disse: “Não encontrei, mas tenho os seus dados, sei que você é de Piracicaba, irei fazer esse histórico que irá constar no meu dicionário de nomes próprios”. Eu, então, lhe disse: “Ah professor o senhor vai publicar!” Ele me disse: “Sim, será uma publicação póstuma, se encontrar editor!” Ele publicaria o livro que estava sendo escrito em publicação póstuma (após a sua morte) se encontrasse editor! Como a obra não saiu ainda, acho que não foi encontrado um editor.


O senhor nasceu em Piracicaba?
Nasci o dia 19 de janeiro de 1924, em Rio das Pedras, mas sou cidadão piracicabano, meu pai, Olimpio Consolmagno, nasceu em Rio das Pedras em 4 de dezembro de 1898, era ótico, ourives e relojoeiro, minha mãe Cristhina Caravita nasceu em 10 de fevereiro de 1900 em Capivari. Meu pai tinha inicialmente um estabelecimento em Rio das Pedras, na rua Prudente de Moraes, 22. Ele estabeleceu-se em Rio das Pedras em 1916, na época ele tinha 18 anos. Em 1933, transferiu-se para Piracicaba, onde montou a Ótica e Relojoaria Consolmagno. Naquele tempo os comerciantes tinham muito orgulho em colocar nome, ou sobrenome, no estabelecimento comercial, nas notas fiscais e nas faturas. Meu avô já tinha levado meu pai duas vezes para a Itália, isso no período até em que ele completou 13 anos de idade. Meu pai queria aprender ourivesaria, com 13 anos de idade ele foi conhecer a arte com o Alleoni, ourives e relojoeiros italianos estabelecidos em Capivari. Naquele tempo havia na praça central de Capivari um fotógrafo daqueles então chamados lambe-lambe. Meu pai viu exposta uma fotografia de uma menina, que ele gostou. Com muito empenho acabou adquirindo a foto. Procurou até encontrar aquela moça. Daí começou o namoro que durou por 10 anos, afinal ele tinha apenas 13 anos! Durante o namoro, as viagens de trem que durava mais de três horas entre Rio das Pedras e Capivari, o dinheiro gasto com telefonemas e viagens segundo dizia meu pai, daria para ter feito mais do que uma casa. Quando conversavam ao telefone, se estendiam, inclusive cantando um para o outro!


O senhor estudou em Rio das Pedras?
O primeiro ano do curso primário eu estudei em Rio das Pedras, isso foi em 1932. Fui reprovado. Eu não sabia que era míope! E 1932 foi um ano tumultuado, foi o ano da Revolução Constitucionalista, quase não tivemos aulas. Em janeiro de 1933 mudamos para Piracicaba, viemos morar na Rua Governador Pedro de Toledo, 126. Depois passou a ser o número 1008. Os caminhões trafegavam ali na Rua Governador em ambos os sentidos, não havia mão nem contramão. Isso foi até 1940, a rua era calçada com paralelepípedo. Os carinhos de tração animal possuíam rodas de madeira revestidas com um aro de ferro, quebravam o silencio da madrugada entregando leite, pão, verduras. Antigamente existia ao lado um depósito de secos e molhados de Elias Daibes. Hoje é onde fica o Bazar Neusa, quase em frente á Sociedade Sírio-Libanesa. O meu consultório e a Ótica Consolmagno ficava onde hoje existe a loja De Manos Permaneci com meu consultório lá por 43 anos. Existiam pessoas que desciam a Rua Governador conduzindo cinco ou seis cabras, cada uma com seu sininho no pescoço. Era para a criançada tomar leite tirado na hora. O pessoal entregava leite de vaca em litros tampados com palha e sabugo de milho, isso antes da pasteurização ser adotada como procedimento regular.


Em Piracicaba o senhor passou a freqüentar qual escola?
Naquele tempo era chamada Escola Normal, hoje Sud Mennucci. Fiz o primário lá. O quarto ano primário eu fiz no Sétimo Grupo, hoje se chama Grupo Escolar Dr. Prudente de Moraes. Só que não era no local onde se situa atualmente. Ficava na casa onde morou Prudente de Moraes. Lá é que foi criado o Sétimo Grupo Escolar em Piracicaba, cujo diretor foi o professor Nestor Pinto César. Para formar a escola, eles pegaram alunos de diversas séries, de diversas escolas, que moravam no centro, para compor o número necessário de alunos e constituir a escola. O ginásio eu fiz o Externato São José, que era a parte masculina do Colégio Assunção. Ficava na Rua Alferes José Caetano, no prédio em que depois funcionou a faculdade de odontologia. Dali eu fui fazer o curso pré-médico em Curitiba.

Em Curitiba, o senhor foi morar em que local?
Como estudante morava em repúblicas. Sempre no centro da cidade. A primeira em que morei ficava na Praça Tiradentes, ao lado da catedral. Passei por lá a dois meses e pude verificar que a casa em que morei ainda existe! Ainda como estudante, morei no Hotel América, que ficava na Rua XV de Novembro, centro da cidade. Curitiba tem um ponto folclórico, onde se reúnem muitos amigos. É a chamada “Boca Maldita”. Fica na antiga Rua XV de Novembro, mais tarde denominada Rua das Flores.

 

Nessa época já existia a famosa reunião?
Na minha época existia a “Gleba dos Apertados”. Quando você precisava de dinheiro sempre havia um agiota que emprestava. Os que necessitavam vender com urgência algum objeto, ali era o desaperto.


O senhor chegou a usar o bonde em Curitiba?
Usei! Até o seu final. Foi vendido por um valor simbólico de 1 cruzeiro, ou seja uma unidade de moeda corrente na época.


Após concluir o curso de medicina o senhor saiu de Curitiba e foi para onde?
Fui para Campo Mourão, no Oeste do Paraná. Quando eu iniciei era médico, médico de sertão, aquele que faz tudo, sem raio-x, sem laboratório, para um universo de 150 mil pessoas havia apenas três médicos era comum ficar sem almoço dois ou três dias ou duas noites sem dormir! Peguei o primeiro surto de febre amarela, onde 32 pacientes, sendo que 18 vieram a óbito. E eu não era vacinado. Muitas mulheres morriam no parto, contraindo o tétano. Morram muitas crianças com difteria. Sarampo matava até adultos! Hoje com a vacinação ninguém mais se lembra dessas doenças. Tudo isso ficou para a história da medicina. Na época não se vacinava ninguém. Tenho dois filhos que realizei o parto deles. Depois passei a atuar sempre foi oftalmologia.


Naquela época era considerado quase o fim do mundo?
Bem para lá! Era uma cidade pequena, estava estagnada, e estava entrando em uma fase de progresso. Ficava a 100 quilômetros de Maringá e a 250 quilômetros de Guarapuava. Comecei a trabalhar em Mamborê, que significa em tupi, “último acampamento”. Os paraguaios vinham roubar mate no Brasil. Eles foram avançando, até chegar a Mamborê, quando houve a resistência dos brasileiros. Eles contam que durante muito tempo foram encontradas peças, armas, ferramentas, deixadas quando os paraguaios tiveram que fugirem.


O senhor tem uma atuação notável dentro da classe médica. Pode citar alguns cargo ou funções ocupadas?
Em 1987 participei do Primeiro Congresso de Ética Médica, quando se elaborou a terceira reforma do código de ética médica. Fui do Grupo 9. Esse código foi feito com a participação de toda a comunidade. Eram 200 pessoas que participavam. Cada bloco era composto por 20 pessoas. Foi nessa época que elaboramos o código de ética vigente. E já se cogita de uma nova reforma, porque muita coisa modificou-se.


A assistência médica, não só no Brasil, mas em qualquer parte do mundo, é vista como insatisfatória?
O médico não satisfaz todas as necessidades. O médico não tem vara de condão para resolver outros problemas. Ele tem que minorar a situação, aliviar. Ele não tem o compromisso de cura, não tem esse dom. Isso ele não tem. Ele pode aplicar a sua arte, o seu conhecimento, a sua solidariedade, amenizar. Ás vezes ele cura. Mas sempre ele tem que consolar. Nem sempre é o médico e o remédio que curam. A maioria das vezes é o próprio organismo que se cura. Ás vezes o organismo está tão debilitado que não há mais o que fazer. Não há remédio nem dedicação de médico que curem! Há uma situação final. Sempre existe esse final.


Existe corporativismo na classe médica?
Não existe. Tanto que são eleitos os representantes. Permaneci no CREMESP – Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo por 10 anos. Na APM, Associação Paulista de Medicina eu fui do quadro de direção e conselho por 26 anos.


Qual é a sua opinião sobre as filas em que pessoas madrugam para serem atendidas, que se diga a bem da verdade não é um fenômeno recente?
O problema da medicina, não só aqui como em outros países é um problema de carência. Verba. Tendo dinheiro não fica difícil. O problema é que tem que ser feito muito com pouco dinheiro. Não dá para fazer! Se houvesse recursos suficientes não haveria filas. Para o doente particular em que ele tem o poder aquisitivo as coisas ficam mais fáceis. Veja que, nem sempre quando você telefona no consultório de um colega, veja bem, estou falando de um colega para outro, a secretária irá marcar consulta dali a cinco dias. Não é de imediato. Ele também tem uma capacidade de trabalho, tem seu limite. Urgência é outra história. Urgência é para ser atendida com urgência.


As faculdades colocam no mercado um grande número de profissionais, e mesmo assim ocorre essa carência?
Não há carência! Há má distribuição de profissionais! Ninguém quer ir para um local onde não há recursos, conforto, estabilidade enfim meio de vida muito bom. Nos grandes centros, nas cidades boas, existe uma superlotação de médicos. Nas cidades pequenas, nos lugares do interior onde não existem condições de vida favorável, onde não há condições de criar e educar os filhos, ai há carência de médico.


O senhor tem idéia de quanto recebe por consulta um médico que atende no serviço federal?
Parece-me que agora houve um reajuste. Mas não chega a vinte reais uma consulta, com direito ao retorno do paciente, que não é remunerado. Um técnico, um encanador, um eletricista ganha mais.


Como o senhor faria um paralelo entre a medicina de três ou quatro décadas com relação á medicina atual?
É difícil estabelecer um paralelo porque as coisas são muito diferentes. Hoje é outra medicina. Aquilo que aprendi na faculdade está na história da medicina. Isso no aspecto técnico profissional. No relacionamento humano também houve modificações. Hoje existe o intermediário. O Estado é um intermediário, ele trata um serviço com o médico. Existe a medicina de grupo, que também dá a assistência medica, mas não diretamente. O paciente realiza um contrato com uma empresa que vai lhe prestar serviço através do médico. Assim com também existem as cooperativas médicas, todas as prestadoras de serviços médicos. São intermediários. O médico já não tem o seu cliente. O cliente é da empresa. Ele procurou aquele médico porque ele é daquela empresa.

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