Sergio Oliveira Moraes
O senhor me incomoda, padre Júlio Lancellotti – e não é pouco. É um incômodo diferente do que o senhor causa nos que têm nôjo de pobre, com acento, como na sabença de Riobaldo, no sertão de Rosa: “Eu sei: nôjo é invenção, do Que-Não-Há, para estorvar que se tenha dó”. Também não é o incômodo dos que odeiam os pobres, ao invés de odiar a pobreza ou dos que além de odiá-los, querem se reeleger, ganhar holofotes, não enfrentando o problema dos milhares em situação de rua, mas tirando-os da vista e danem-se. Por estas bandas não é diferente, infelizmente.
Mas não, padre Júlio, o senhor me incomoda ao fazer-me descontente. Distante da religiosidade, há uns 10 anos propus-me a ler a Bíblia Hebraica, os Evangelhos e os Livros dos Apóstolos, Epístolas e Apocalipse. Quase desisti, insisti e segui relendo. A descoberta das traduções de Frederico Lourenço, o estudo literário a partir da BKJ 1613, tornaram a leitura cada vez mais prazerosa. Atingi alguma profundidade literária, talvez, mas o sentido religioso só viria com o senhor .
Foi por volta de 2018 que o senhor me chegou por um vídeo e nele sua disposição de estar sempre ao lado dos pequeninos, protegendo-os do que poderia vir. O senhor “não arredou o pé”, continua com eles sob a bota (essa a palavra que o senhor utilizou) da intolerância. Quando por conta da pandemia suas missas aos domingos passaram a ser filmadas e disponibilizadas, passei a assisti-las. E eu que não creio, cumpro o ritual de ler antecipadamente os textos, para tentar aproveitar melhor. Não me converti ao cristianismo (Mateus 25, 31-46, ai de mim!), mas suas palavras, sua ação pelos que sofrem, me pegam. Aprendi com o senhor a não ser seletivo na minha indignação. Se me indigno com a questão do aborto (sem entrar no mérito), porque não me indigno com a violência da fome, da dor, das mortes dos pretos pelas “balas perdidas”? Dos pobres nas periferias? Dos que seguem outra orientação sexual? Dos povos indígenas? Das milhares de mortes evitáveis na pandemia? Dos moradores e moradoras de rua? Dos quilombolas? Das mulheres? Das intolerâncias religiosas? Da misoginia?
Padre, o senhor ensinou-me a indignação não seletiva, desde o início da missa quando dá nome aos que sofrem. Mostrou-me a beleza da sua fé, expondo-se a intolerâncias, ameaças, agressões, para praticar a palavra, o seguimento a Jesus, sua perseverança para dar forças aos que o ouvem, e que o seguimento de Jesus não vem sem dor. Deu sentido a um trecho do Sermão da Sexagésima, do padre Vieira, que me deixava encafifado: “Entre dois sujeitos tão grandes não me atrevo a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio muito contente do pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim”. Assim, padre Júlio, seu sermão deu sentido às minhas leituras e ao deixar-me descontente de mim, salva-me da indiferença diante da dor do outro. E eu que não creio lhe agradeço muito por isso.
Em tempo: baita HQ, a “Pobrefobia”, que o senhor e quadrinistas acabam de lançar sobre “vivências das ruas com Padre Júlio Lancellotti”, Ed. Draco. Baita!
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Sergio Oliveira Moraes, físico e professor aposentado Esalq/USP.