Armando Alexandre dos Santos
Referi-me no artigo da semana passada a um insuspeito e surpreendente depoimento de Karl Marx, acerca do feudalismo medieval. Não o transcrevi na íntegra porque é um tanto longo e longas transcrições costumam ser vistas e interpretadas como recurso de alunos (e jornalistas) preguiçosos… E também porque julgava já ter, em outra ocasião, colocado esse texto de Marx ao alcance dos leitores da Tribuna Piracicana.
Mais de um leitor, entretanto, manifestou, por telefone e por e-mail, o desejo de conhecerem esse texto. Passo a transcrevê-lo, pois, do capítulo XXIV do Livro I de O Capital, no qual trata da passagem do sistema feudal para o capitalista na Europa em geral, e descreve, à maneira de exemplo, o que aconteceu concretamente na Inglaterra:
“Nos fins do século XIV, a servidão tinha desaparecido praticamente da Inglaterra. Então e mais ainda no século XV, a imensa maioria da população consistia de camponeses proprietários, qualquer que fosse o título feudal com que se revestissem seus direitos de propriedade sobre a terra que lavravam. Nos grandes domínios senhoriais, o bailiff, ainda um servo, foi substituído pelo arrendatário livre. Eram assalariados da agricultura os camponeses que utilizavam seu tempo de lazer trabalhando para os grandes proprietários, e os assalariados propriamente ditos, uma classe independente, relativa e absolutamente pouco numerosa. Mas estes, ao mesmo tempo, eram de fato lavradores independentes, pois, além do salário, recebiam uma habitação e uma área para lavrar de 4 e mais acres. Demais, junto com os camponeses propriamente ditos, dispunham do usufruto das terras comuns, onde pastava seu gado e de onde retiravam o combustível, lenha, turfa etc. Nunca devemos esquecer que mesmo o servo, embora sujeito ao tributo de vassalagem, era proprietário do lote vinculado à sua habitação e ainda coproprietário das terras comuns. (…) Em todos os países da Europa, a produção feudal se caracteriza pela repartição da terra pelo maior número possível de camponeses. O poder do senhor feudal, como o dos soberanos, não depende da magnitude de suas rendas, mas do número de seus súditos, ou melhor do número de camponeses estabelecidos em seus domínios. Embora o solo inglês, depois da conquista normanda, se repartisse em baronias gigantescas, havendo casos de uma só abranger 900 antigos senhorios anglo-saxônicos, estava ele coalhado de sítios dos camponeses, embora separados a espaços pelas grandes áreas senhoriais. Essas condições, juntamente com o florescimento das cidades, característico do século XV, propiciavam ao povo aquela riqueza que o chanceler Forterscue descreve com tanta eloquência em sua obra Laudibus Legum Angliae, mas excluíam a riqueza capitalista.
“O prelúdio da revolução que criou a base do modo capitalista de produção ocorreu no último terço do século XV e nas primeiras décadas do século XVI. Com a dissolução das vassalagens feudais, é lançada ao mercado de trabalho uma massa de proletários, de indivíduos sem direitos, que `por toda parte enchiam inutilmente os solares´, conforme observa acertadamente Sir James Steuart. Embora o poder real, produto do desenvolvimento burguês, em seu esforço pela soberania absoluta, acelerasse pela força a dissolução das vassalagens, não foi de modo algum a causa única dela. Opondo-se arrogantemente ao Rei e ao Parlamento, o grande senhor feudal criou um proletariado incomparavelmente maior, usurpando as terras comuns e expulsando os camponeses das terras, os quais possuíam direitos sobre elas, baseados, como os do próprio senhor, nos mesmos institutos feudais. O florescimento da manufatura de lã, com a elevação consequente dos preços da lã, impulsionou diretamente essas violências na Inglaterra. A velha nobreza fora devorada pelas guerras feudais. A nova era um produto do seu tempo, e, para ela, o dinheiro era o poder dos poderes. Sua preocupação, por isso, era transformar as terras de lavoura em pastagens. Em sua obra Description of England. Prefixed to Holinshed´s Chronicles, descreve Harrison como a expropriação dos pequenos camponeses arruína o país. `Mas que importa isso aos nossos grandes usurpadores!´ As habitações dos camponeses e as choupanas dos trabalhadores foram violentamente demolidas ou abandonadas à decadência total.
“`Quando defrontamos´, diz Harrison, `os velhos inventários dos senhorios, verificamos que desapareceram inúmeras casas e pequenas lavouras, de modo que a terra alimenta muito menos gente, muitas cidades decaíram, embora floresçam algumas novas (…) Poderia falar de cidades e de aldeias, transformadas em pastos de ovelhas e onde apenas se encontram as mansões senhoriais.´
“Aquelas velhas crônicas exageram as queixas, mas traduzem exatamente a impressão causada sobre os contemporâneos pela revolução nas condições de produção. Uma comparação entre as obras dos chanceleres Fortescue e Thomas Morus revela o abismo que separava os séculos XV e XVI. A classe trabalhadora inglesa foi lançada, sem transições, da idade de ouro, na expressão acertada de Thornton, para a idade de ferro.” (MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Tradução de Reginaldo Sant´Anna. 6ª. edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980, p. 831-834).
Marx reconheceu, assim, que o regime feudal não consistia pura e simplesmente numa exploração do campesinato pelos senhores da terra, mas também proporcionava benefícios aos servos e plebeus. E isso a tal ponto que, com a dissolução dos vínculos feudais, passaram de uma “idade de ouro” para uma sinistra “idade de ferro”.
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.
Frase a destacar: O regime feudal não consistia pura e simplesmente numa exploração do campesinato pelos senhores da terra, mas também proporcionava benefícios aos servos e plebeus.