Armando Alexandre dos Santos
No que consistia, precisamente, a servidão de gleba na Europa Medieval? Em muitos manuais didáticos, lemos a explicação simplificadora e errônea de que era uma forma de escravidão. É verdade que, no latim do antigo Império Romano, o substantivo “servus” designava o escravo sem nenhum direito, mas no Medievo o mesmo substantivo “servus” passou a designar algo completamente diferente. Como ponderou espirituosamente Marc Bloch, “para grande desespero dos historiadores, os homens não têm o hábito, a cada vez que mudam de costumes, de mudar [também] o vocabulário” (Apologia da História. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, p. 59). Em outras palavras, os vocábulos mudam de sentido no tempo e não podem sempre ser entendidos univocamente, como se exprimissem sempre exatamente a mesma coisa.
Sobre a diferença essencial entre as condições do “servus” romano e do “servus” medieval, esclarece Régine Pernoud: “A condição do servo medieval é totalmente diferente da do escravo antigo: o escravo é uma coisa, não uma pessoa; está sob a dependência absoluta do seu dono que possui sobre ele direito de vida e de morte; qualquer atividade pessoal é-lhe recusada; não conhece nem família, nem casamento, nem propriedade. O servo, pelo contrário, é uma pessoa, não uma coisa, e tratam-no como tal. Possui uma família, uma casa, um campo e fica desobrigado em relação ao seu senhor logo que pague os censos. Não está submetido a um patrão, está ligado a um domínio: não é uma servidão pessoal, mas uma servidão real. A restrição imposta à sua liberdade é que não pode abandonar a terra que cultiva. Mas, notemo-lo, essa restrição não deixa de ter uma vantagem, já que, embora não possa deixar a propriedade, também não podem tirar-lha; esta particularidade não estava longe, na Idade Média, de ser considerada um privilégio (…) mais ou menos aquilo que seria nos nossos dias uma garantia contra o desemprego. O rendeiro livre está submetido a toda a espécie de responsabilidades civis que tornam a sua sorte mais ou menos precária: se se endivida, podem confiscar-lhe a terra; em caso de guerra, pode ser forçado a tomar parte nela, ou o seu domínio pode ser destruído sem compensação possível. O servo, esse, está ao abrigo das vicissitudes da sorte; a terra que trabalha não pode escapar-lhe, da mesma maneira que não pode afastar-se dela. Esta ligação à gleba é muito reveladora da mentalidade medieval, e, notemo-lo, a este nível, o nobre está submetido às mesmas obrigações que o servo, porque ele tampouco pode em caso algum alienar o seu domínio ou separar-se dele de qualquer forma que seja: nas duas extremidades da hierarquia encontramos essa mesma necessidade de estabilidade, de fixação, inerente à alma medieval, que produziu a França e de uma maneira geral a Europa ocidental. Não é um paradoxo dizer que o camponês atual deve a sua prosperidade à servidão dos seus antepassados; nenhuma instituição contribuiu mais para o destino do campesinato francês; mantido durante séculos sobre o mesmo solo, sem responsabilidades civis, sem obrigações militares, o camponês tornou-se o verdadeiro senhor da terra; só a servidão poderia realizar uma ligação tão íntima do homem à gleba e fazer do antigo servo o proprietário do solo. (Luz sobre a Idade Média. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997, p. 43-44).
É sempre oportuno lembrar, a esse propósito, o insuspeito depoimento de Karl Marx (1818-1883) acerca do sistema feudal, no qual não eram somente beneficiados os nobres, mas também os membros do “terceiro estado”. E isso a tal ponto que os servos e os plebeus livres foram os principais prejudicados quando, já no século XV, dissolveram-se muitos vínculos feudais e, como consequência, ficaram desamparados e reduzidos à condição de simples proletários. Na expressão textual de Marx, isso lhes acarretou a passagem de uma “idade de ouro” para uma sinistra “idade de ferro”.
Por outro lado, na Idade Média a condição de servo nada tinha de desonroso. Servir era algo muito digno e muito dignificante. Isso, não somente quando se tratava de um nobre que servia ao imperador, ao rei ou a algum nobre de categoria mais elevada, mas também quando era um plebeu que se punha ao serviço de um nobre, pela cerimônia “de recomendação”. Na ótica de hoje, para muita gente servir pode parecer algo desprezível e aviltante, mas no Medievo era muito honroso ter um senhor, pois o servidor de certa forma se alçava ao nível da pessoa à qual servia. Podemos fazer, ainda hoje, alguma ideia dessa realidade quando lembramos o sistema de compadrio e apadrinhamento, ainda praticado em algumas regiões do Brasil: é prestigioso ser compadre ou afilhado de alguém importante. “Quem tem padrinho não morre pagão”, dizia-se outrora, ou seja, não fica desamparado.
Até hoje, as expressões “um seu criado”, ou “um seu criado para servi-lo”, são usadas em Portugal e em algumas regiões do interior do Brasil por alguém que se apresenta, ou cujo nome é chamado em voz alta. Havia, no século XIX, uma fórmula costumeira para um pai anunciar aos amigos o nascimento de um filho: comunicava a eles que “nesta casa V. Exa. tem mais um criadinho ao seu serviço”. Na Alemanha, ainda é usual, em certas regiões, saudar os amigos em latim, dizendo simplesmente “Servus!” (ou “Serva!”, se for mulher). O significado dessa saudação é que a pessoa se coloca ao serviço do outro. Na Itália se usa, como saudação inicial de uma conversa entre conhecidos ou amigos, o “ciao”, que foi no Brasil transformado em “tchau” e aqui se usa somente como forma de despedida. “Ciao” é a contração da palavra “schiavo”. Dizer “ciao” significa colocar-se como escravo à disposição e ao serviço do outro.
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.
Frase a destacar: Na Idade Média a condição de servo nada tinha de desonroso. Servir era algo muito digno e muito dignificante.