O natal que passou presente

Camilo Irineu Quartarollo

Em casa, tiram-se da árvore de natal os presentes, garrafas de uísque aos adultos e os eletrônicos às crianças.

É comum no Natal lembrar-se também dos pobres e incluí-los em alguma lista de presentes ou de inservíveis do baú. Para alguém sempre serve aquela camisa puída, de gola torta e com uma pequena manchinha da máquina de lavar. Parece até que eles não percebem isso, já que agradecem sem comentar.

Nas ruas da cidade os pobres são identificados pela aparência marginal, estereotipados, deambulando pelos locais de hábitos incertos e obscuros, entre coisas, encostados ou encolhidos como fetos de uma sociedade que os aborta. Apesar do esforço de pessoas de boa vontade e bem-aventuradas o problema transcende a mera caridade de retrovisor.

Como ocorre na Cracolândia, alguns “habitam” as ruas por ruptura familiar com pais ou cônjuges, desalento empregatício, perda de moradia, álcool, drogas e causadores de frustrações e depressões profundas. Essa situação não se resolve por confronto violento da polícia, cães, atiradores de elite ou por acomodação forçada num território neutro de clínicas, para tirá-los de perto do centro urbano. São pobres já dos natais passados, que reclamam atenção e reconhecimento, os quais não são simples casos de polícia ou B.O. coletivo.

José e Maria foram à Belém para recenseamento e a cidade não lhes recebeu. Foram por um tempo moradores de rua. Poderiam ser confundidos com terroristas do Hamas ou com os chamados escudos humanos os quais são eliminados sistematicamente na Israel de hoje.

Mas por que se preocupar em data tão festiva? No centro, a cidade está bonita e policiais vigiam o natal, o papai-noel parou seu trenó e distribui presentes, os cidadãos podem levar seus filhos ao bom velhinho. É seguro!

E, ah, os presentes mágicos! Ouro, incenso e mirra. O ouro, ao que parece, não serviu de muito na vida adulta de Jesus. Contudo, foi mais oportuno o óleo caríssimo de Maria, o qual lhe aliviou os pés machucados de caminhante. Ao fazê-lo Maria desperta a cobiça de Judas com um óleo de quase treze mil reais de hoje. Judas sentiu a flagrância que se espalhava pela casa e retrucou pelo desperdício da mulher. O discípulo torto tentou tirar o frasco da mão dela, tanto que o próprio Jesus interferiu.

Teme-se ainda que quanto melhor a hospitalidade aos pobres, tantos mais pedintes venham à cidade – a pobreza é feia. Um problema do qual o prefeito quer se livrar e inaugurar grandes obras, de “revitalização” do espaço público, de uma arquitetura inacessível, de inalcançáveis arranha-céus como as torres de Babel.

Em geral, as prefeituras mantêm cuidados precários e inóspitos a esses errantes da vida. O morador de rua está em constante trânsito pela cidade, pelo Estado, fronteiras transnacionais e pelo presépio urbano e frio, urgindo de tratamento correto, humano, e não de cacetetes.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, ensaísta, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

 

 

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