Almir Pazzianotto Pinto
Pouco sei sobre o Ministro Celso de Mello. Lembro-me vagamente dele na Assembleia Legislativa do Estado, no final da década de 1970. Havia se licenciado do cargo de promotor de Justiça para trabalhar no gabinete do deputado Flavio Bierrembach, meu companheiro de bancada do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Anos depois soube que participava do gabinete do Ministro da Justiça Saulo Ramos. Às vésperas do término do mandato do presidente José Sarney foi indicado para integrar o quadro de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). A objeção que alguém lhe fez dizia apenas que era jovem. Quando eventualmente nos cruzamos em aeroportos, os cumprimentos eram formais. Jamais nos detivemos para conversar.
Nasceu em Tatuí, pacata cidade interiorana semelhante a Capivari, minha terra natal. Dedicou a vida ao estudo do direito. Não dá aulas, não faz palestra, não possui fazenda. Desde o ingresso no STF dedica-se integralmente ao Tribunal. É conhecido pela conduta recatada, avessa a contatos sociais. Contam os servidores que trabalha até altas horas da noite, na redação de votos extensos, na opinião de alguns prolixos, mas solidamente fundamentados. Quando relator é raro ficar vencido, pelo respeito que lhe dedicam os demais magistrados.
Subitamente, porém, já às vésperas da aposentadoria, S. Exa. ganha as páginas dos jornais e se transforma numa espécie de divisor de águas na opinião pública. Conquanto em outras ocasiões tenha sido alvo do noticiário, o despacho que ordenou a divulgação da fita gravada na reunião ministerial de 21 de abril atraiu sobre S. Exa. pesado canhoneio, disparado por hostes bolsonaristas. A coragem do ministro Celso de Mello me trás à lembrança a figura do ministro Álvaro Ribeiro da Costa, presidente do STF durante o governo do presidente Castelo Branco. Quem se interessar deve ler a síntese publicada pelo Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro [DHBB] (FGV-Cepedoc, 2ª edição, 2001, vol. II, págs. 1643/5). O Ministro Álvaro Ribeiro da Costa teve a ousadia de enfrentar e fazer valer a Constituição, no início do militar parido pelo Ato Institucional de 9/4/1964.
Agiu bem ou agiu mal o Ministro Celso de Mello? Em nome da defesa do pudor público e da conveniência do chefe do Poder Executivo, deveria manter sob sigilo a gravação, como exigia o presidente Jair Bolsonaro? A resposta é simples: despachou de conformidade com o Art. 37 da Constituição, cujo texto transcrevo: “A administração pública direta ou indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…)”.
A reunião interministerial era de interesse público, pois objetivava determinar, para a cúpula do Poder Executivo, medidas de interesse do presidente. Não se tratava de jantar de confraternização entre amigos, ou de reunião de caráter social.
Ou o ministro despachava no sentido da divulgação, ou prevaricava como integrante do Supremo Tribunal Federal, a quem incumbe a guarda da Constituição (Art. 102). Ao determinar que não se divulgassem trechos provavelmente ofensivos ao Paraguai e à China, países com os quais o Brasil mantém relações diplomáticas e são parceiros comerciais, S. Exa. adotou medida correta, como a prudência lhe recomendou.
A duras penas o Brasil conseguiu restabelecer o Estado de Direito Democrático. Não nos encontramos sob a ditadura de Floriano Peixoto. Acusado de exercer a presidência da República em desacordo com a Constituição de 1891, o Marechal de Ferro suspendeu por 72 horas as garantias constitucionais, prendeu e desterrou políticos oposicionistas como José do Patrocínio, Carlos Laet, Pardal Mallet, Olavo Bilac. Ao ser informado que se preparava pedido de habeas corpus para libertação dos presos, perguntou: “E quem dará habeas ao Supremo”.
A época das ditaduras pertence ao passado. Dela os brasileiros não sentem saudades. Confiam, por outro lado, no patriotismo das Forças Armadas como guardiãs da democracia, “sob a autoridade suprema do Presidente da República”, mas destinadas “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes (!), da lei e da ordem”. É o que reza o Art. 142 da Lei Fundamental que, ao tomar posse como presidente, Jair Bolsonaro prestou o compromisso de defender.
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Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi Ministro do Trabalho, presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), autor de A Falsa República