“Presente” para Piracicaba

Sergio Oliveira Moraes

 

O título de uma matéria em um matutino local, associando o “Boulevard Boyes” a um “presente para Piracicaba” foi “fatal”. Fatal associá-lo ao “Cavalo de Troia”, o “presente” deixado pelos gregos para os troianos. O principal: depois de 10 anos de cerco a Troia, mortes e destruição, os gregos constroem um gigantesco cavalo de madeira cujo interior abrigaria soldados. Abandonam o “presente” na praia, fingem que desistiram do cerco, vão-se ao mar. Cuidado com o “presente”! Avisos são ignorados, as muralhas rompidas para permitir sua entrada, festança, a guerra acabou. No escuro da noite, soldados saem do interior, dão o sinal aos barcos que aguardavam, será o fim de Troia.

O que os teria levado a acreditar que depois de 10 anos os gregos foram embora e ainda deixaram um “presente”? Na minha meia página de leitura de Freud, um trecho: “chamamos, então, uma crença de ilusão quando, em sua motivação, a realização de desejo passa para o primeiro plano, e, assim fazendo, desistimos de sua relação com a realidade, da mesma forma como a própria ilusão renuncia às suas comprovações.” (O mal-estar na cultura e outros escritos. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Editora Autêntica, pg. 264).

Gosto desse olhar para o comportamento e consequente destruição dos troianos: o desejo do fim da guerra não lhes permitiu ver que “quando o milagre é demais o santo desconfia”. Estou “estragando” o mito grego, tentando racionalizá-lo? Acho que não, motivo-me pelas crenças, negacionismos, “presentes”que nos assolam.

Essa diferenciação que Freud fez entre “erro” e “ilusão” (associada a um desejo) serve para tentar me aproximar do porquê das escolhas que fazemos para orientar nossas “opiniões”, nossos “vieses”. Do porquê abrimos mão do olhar crítico, sempre que uma opinião, ou pior, uma “fake news” alimenta, reforça nossa ilusão. Dos mais recentes “fakes”: o que motiva alguém a crer que a demora na liberação dos brasileiros retidos na Faixa de Gaza poderia ser uma retaliação pelo “apoio” do governo brasileiro ao Hamas? Fake.

Interpreto à luz da minha meia página de Freud: se não “gosto” do governo que aí está, meu desejo é difamá-lo a qualquer preço, não importa a realidade. Assim, não importa que o próprio embaixador de Israel no Brasil culpe o Hamas pela demora, ignora-se essa informação (entre outras), pois parece muito mais contundente (maior satisfação ao meu desejo) se um outro país estiver retaliando, usando inocentes, por culpa do governo que aí está. No meu desvario, na minha ilusão, sequer me dou conta de que estou criticando também o país que retalia – a ilusão cega. Em tempo: não estou pregando a defesa do governo, mas a crítica, sempre – sem desistir da relação com a realidade, a submissão ao desejo.

E o que tem a ver “Presente para Piracicaba”,“Boulevard”, com “a cegueira da minha ilusão”, “apoio ao Hamas”? De um lado, a destruição de um espaço cheio de significado, acessível à diversidade da polis, ao exercício da convivência. De outro, o esvaziamento do diálogo com essa diversidade, com o que “apoia quem eu não apoio”.

Consequências? É só olhar para a temperatura nos termômetros, digo, nos indicadores de violência ou nas redes “sociais”.

_____

Sergio Oliveira Moraes, físico e professor aposentado Esalq/USP

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima