Capoeira: memória de resistência e libertação

Adelino Francisco de Oliveira

 

Desde tenra idade, sempre nutri certo fascínio e admiração pela capoeira, mesmo sem compreender muito bem se estava diante de uma dança ou de uma forma de luta e autodefesa. Aliás, muitas vezes almejei aprender a jogar capoeira justamente com o objetivo de conseguir recursos físicos para me defender dos valentões da escola com seus muitos preconceitos, que, cotidianamente, insistiam em praticar violências e agressões racistas. Lembro-me do Carlos, que era filho de um mestre de capoeira. Com o Carlos ninguém se atrevia a fazer bullying racial, com medo de levar cabeçadas e pernadas.

Uma roda de capoeira é sempre um evento emblemático, envolvente e profundamente simbólico. Demarcada pela cadência do singular e marcante som do berimbau, do atabaque, do pandeiro, do reco-reco e do agogô, que dão o ritmo das cantigas, a roda de capoeira é puro encontro, movimento e ginga, reluzindo pela agilidade, leveza, vigor e destreza dos corpos dos capoeiras. A ousadia e impetuosidade de corpos que dançam e também lutam, na ludicidade e gingado de um jogo delineado por múltiplas formas de resistência.

Definitivamente a capoeira é arte, sendo jogo, dança, musicalidade e também luta. Tecida no encontro de culturas, a capoeira é a maravilhosa síntese da identidade afro-brasileira. De mãe África talvez seja possível se resgatar a dança, que alcança no Brasil uma dimensão de resistência simbólica e de luta real, buscando superar o contexto da pesada e perversa escravidão.

É preciso ressaltar que a capoeira foi antes de tudo uma maneira criativa e original de resistência em um duplo sentido, levantando-se contra as formas de exploração e opressão próprias do cotidiano de escravidão. Resistência simbólico-cultural, na coragem de se opor à visão eurocêntrica do mundo colonial, que insistia em negar qualquer valor nas expressões culturais próprias da mãe África. Resistência real e concreta, dando potência para o corpo negro, na luta por sua libertação.

A capoeira desponta como resistência simbólica, no plano da cultura, com sua ginga decologial, ousando afirmar os valores e símbolos do povo preto. A capoeira desvela-se então como o poderoso e criativo ritmo de uma cultura latente, cheia de ginga e dignidade desde a África. A capoeira é sabedoria dos pretos, que tem como elemento fontal o resgate de uma identidade fundada na memória de uma fecunda e inesgotável ancestralidade africana mais que milenar.

Mas a capoeira é também resistência real, no enfrentamento de corpos, derrubando o capataz, na luta pela liberdade, rompendo com os grilões da escravidão. Com golpes e ágeis movimentos, o capoeira é aquele que tem a destreza de desferir chutes, rasteiras, cabeçadas, joelhadas, cotoveladas e, sobretudo, pernadas, derrotando seu oponente. O corpo, que antes era escravizado, na ginga do capoeira, revela-se forte e altivo, capaz de levar ao chão seu oponente, seu algoz.

Das coisas que me arrependo do tempo de juventude na periferia de São Paulo, sem dúvida está o fato de nunca ter me disposto a aprender a jogar capoeira. A timidez, a formação católica e, sobretudo, a ausência do letramento racial talvez expliquem um pouco essa lacuna existencial e formativa. Ao escrever essas linhas, vem à mente a representação de toda a energia que devia emanar das rodas de capoeira lá no Quilombo de Palmares, sob os movimentos ágeis e impactantes do grande mestre Zumbi. Cada roda de capoeira, mesmo sem nenhuma intencionalidade declarada, atualiza, no tempo histórico, essa linda, profunda e fundamental memória de resistência e libertação.

 

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Adelino Francisco de Oliveira, professor no Instituto Federal, campus Piracicaba

Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências da Religião; [email protected]

 

 

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