Camilo Irineu Quartarollo
Assistimos estupefatos, e diariamente, a matança dos inocentes na Palestina. Nem chegou o Natal e já apareceu o maldito fantasma de Herodes. Vemos crianças mortas dos escombros, com os rostinhos esbranquiçados da poeira, inertes, só restando a misericórdia de um pano úmido. Se sobrevivem por alguns momentos são acometidas de calafrios e tremores do susto, do medo, de olhares vagos, exangues num delirium tremens, perdidas para sempre nas lágrimas de Raquel. Não os permitem viver na Palestina e muitos nem chegam aos trinta e três anos.
A Matança dos inocentes é um dos primeiros episódios dos evangelhos de Mateus e Lucas. Alega-se que a narrativa não seja histórica, mas preenchimento de uma lacuna desconhecida da infância de Jesus. Contudo, o que importa é que essa crueldade levantada na narrativa, que se repete em Gaza e na História. Quer verídica ou lenda, essa narrativa é uma forte advertência profética contra as matanças recorrentes de indefesos, as quais devem ter ocorrido muitas vezes numa versão de farsas como agora, pois, além de tudo, é uma vergonha histórica.
Antes dos escritores sagrados, dos quatro evangelistas, o evangelho era um estilo panfletário dos reis da antiguidade, como o Evangelho do Nascimento do Imperador Augusto, o qual era cantado aos povos conquistados nas províncias romanas. Ia de mão em mão para enaltecer o tal “salvador predestinado”, mas produzia apatia e asco entre os plebeus.
Os escritores sagrados retomam o estilo pagão direcionando-o em favor dos pobres, para animar as comunidades, consolar aflitos e proclamar a salvação por um crucificado ressurreto. Sob perseguição cruel e sistemática, os evangelhos fluem entre as comunidades mais remotas como um jornal, um noticioso subversivo, animando e proclamando salvador um Jesus solidário, o qual liberta os vulneráveis do medo e da apatia do sofrimento. Coisas que, quer escritas ou orais, nos chegam até hoje como sombras ancestrais e move sentimentos religiosos.
Os evangelhos não se prendem a meras antíteses ocasionais ou mera epopeia propagandista, mas identifica-se com verdades históricas e anseios reprimidos, em protesto por uma vida de paz numa mesa comum, anunciando um reino sob a égide do mesmo pai, o Abbá.
Para justificar a matança indiscriminada em Gaza usam-se de jargões, num evidente descaramento retórico. Usam-se termos como “guerra preventiva”, “escudos humanos” é até “direito à defesa” quando são ataques, destruindo tudo como terremotos. O Estado de Israel, mais forte e rico, se vitimiza pelo holocausto nazista de décadas passadas. Entretanto, muitos judeus protestam contra a ação fulminante dos seus irmãos palestinos, ambos semitas. O Estado de Israel estaria mesmo “apenas se defendendo”, matando “por acidente” crianças, mulheres, idosos e inválidos em camas de hospital?
O fantasma de Herodes ainda persegue os filhos de Raquel sem consolação e, por certo, quem mata crianças mata o divino em si mesmo.
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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, ensaísta, autor de crônicas, historietas, artigos e livros