Boyes. Até quando?

Sergio Oliveira Moraes

 

 

“Quando o apito da fábrica de tecidos/Vem ferir os meus ouvidos/Eu me lembro de você”. Os dias me trazem “Três Apitos”, de Noel, embora não haja mais os apitos e nem a musa que no inverno sem meias ia ao trabalho. Não mais.

Mas quando penso na “fábrica de tecidos Boyes”, “eu me lembro de vocês” tios da infância, um irmão, o outro cunhado de minha mãe. O primeiro morou por anos em frente ao trabalho, à Boyes. Vejo-nos em um retrato em branco e preto, festa de aniversário da prima, “às antigas”: bolo, bala de coco, refrigerantes sobre a mesa, um prato de espetinhos de salsicha e azeitona, sanduiches de pão de forma cortado em quatro – o “tema” era brincar.

O outro tio, também da Boyes, morava com a família “na Rosário”. Foi vereador em tempos em que a atividade não era remunerada. É, já foi assim. Morávamos em “casas simples/Com cadeiras na calçada/ E na fachada/Escrito em cima que é um lar” – Gente Humilde, como na letra de Vinícius e Buarque para a música de Garoto.

Porque essa lembrança agora? Idealização do passado? Reacionarismo? Não. Mas não idealizar o passado não significa pactuar com destruí-lo, mutilar nossa memória. Não, não concordo com a mutilação da área, de parte do conjunto de edificações que constituem a antiga fábrica de tecidos Boyes.

E não concordo, não “só” por ser uma Área de Preservação Permanente (APP), por desconhecer a existência de qualquer relatório do impacto ambiental, urbanístico, e outros, que trate da demolição de seis dos treze prédios históricos tombados, às margens do nosso rio, sua substituição por um empreendimento imobiliário particular – não concordo por serem históricos, por fazerem parte da memória de Luiz de Queiroz!

Abro o livro: “A Passagem da cidade: uma Piracicaba que poderia ter sido”, do Francisco Ferreira: “as realizações dos três maiores benfeitores de Piracicaba – Luiz de Queiroz e os Barões de Rezende e Serra Negra”. Releio a história da criação da Fábrica de Tecidos Santa Francisca, assim Luiz de Queiroz a batizou, a trajetória até tornar-se a “Boyes”.

Busco no “site” da ACIPI, Memorial de Empreendedorismo, a matéria: “Fábrica de tecidos “Boyes”. Demoro-me na foto do “Empreendedor Luiz de Queiroz / Acervo da USP/ESALQ”, releio no texto do Historiador Lucas Magioli o discurso da esalqueana Adelaide Peregrina, reproduzido no Jornal de Piracicaba de 27/12/1900: “em ato de encerramento dos trabalhos daquele ano, onde destaca a importância da fábrica para os trabalhadores locais” e segue a fala da jovem. Por favor, leiam.

Leiam e entenderão por que não aceito que a memória de Luiz de Queiroz seja mutilada por quatro torres de apartamentos residenciais, de 90 m de altura cada. Reflitam sobre a fala da esalqueana: “Não é um edifício sumptuoso … mas ante ele o passante deve descobrir-se com respeito”. É do que se trata, respeito.

Sepultamos a Pinacoteca Miguel Dutra, o Observatório Astronômico de Piracicaba Elias Salum e nem bem saímos do velório da Praça Antônio de Pádua Dutra, ficamos sabendo do propósito de mutilar parte do legado de Luiz de Queiroz, chega. Chega!

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Sergio Oliveira Moraes, físico e professor aposentado Esalq/USP

 

 

 

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