Certamente, foi a chuva. Entre uma ideia e outra, o flutuar como os sacos de lixo brilhantes pelas avenidas inundadas. Enxurradas. E as lembranças tantas, cheirando a outubro – anúncio antecipado de que o ano se finda. Meu copo úmido de uísque estampando na memória uma crônica de Rubem Braga. Cresci lendo as crônicas dele – e de Fernando Sabino, de Paulo Mendes Campos, de Carlos Drumonnd de Andrade. Não porque me as dessem como privilégio, apenas. Mas mais porque as roubava da estante chuvosa e flutuante da biblioteca-enxurrada que era para mim feita de minha casa.
De novo a cena: é outubro feito novembro que chegou antes – e chove. Chovem pela janela do escritório as minhas dores de alma, que não são nada perto das dores secas que reais do mundo estampado nas folhas impressas que diárias da imprensa que resta e nas telas brilhantes que gritam em cores e definições mais do que vivas nos telejornais. (Já as minhas dores me doem porque são minhas, oras!). Meu uísque barato banhado em gelo também chove – e absorve de tudo alguma óbvia tristeza. Então, me lembro de Vinícius de Moraes: “o uísque é o cachorro engarrafado”. Depois, me vem Groucho Marx: “afora o cachorro, o livro é o melhor amigo do homem. E dentro do cachorro é muito escuro para ler”.
Sem sair do lugar, me lanço na chuva (sempre) – nesta época, não sem meus cachorros imaginários e meus uísques fatais (e às vezes com algum cigarro emprestado de amigos mais do que pacientes e leais – certo Rodrigo?). E chove. E chovo (desafiando a gramática do verbo do chover). E chovem. Chovem por aqui tantos textos repletos de memórias de tempos que, de tão idos, nada mais são do que atuais. Nesta Tribuna-tablado que semanalmente nos acolhe, não perco os artigos do físico das letras, o mago-ateu Sergio Moraes. Nas redes etéreas que pseudo-sociais, lá estou a ler as reflexões feito-enxurradas (então agora em outubro também chove para dedéu?) do padre-amigo-ortodoxo, o poeta Tito Kehl.
Chove – e um mundo de letras crônicas e rabiscos eu plasmo. Chove em desenhos beligerantes – e sem sarcasmos – as charges do Erasmo. Chove em fina figura, num mundo oco e louco, as telas a óleo ou a pastel do meu querido amigo Caputo, Rocco. Chovem as artes de Chico Crócomo, as análises infernais da mestra-de-tantos-professora Josiane, a leitura certa que certeira feita em comentários belicosos (e mais do que irônicos e gostosos) – e que ela sempre nos anime! – lançados em palavras-granadas da jornalista Bia Vicetini. Chove. É outubro, mas chove. Ave!
Pausa. (…). Respiração.
Lá fora agora a chuva dá um tempo (o que em termos linguísticos e pluviométricos não deixa de ser um paradoxo metereológico). O uísque também parece que estiou. A crônica, como o fim do ano e o meu uísque, anuncia aqui que no próximo parágrafo o fim também acontece. (Penso: e se não colar? E se não gostarem? Lembro de novo de Groucho Marx: “esses são meus princípios, se não gostarem, tudo bem, tenho outros”. Depois, faço para mim a transposição em paródia: “essa é a minha alma-crônica, se não gostarem, tudo bem, não tenho outra”).
O que seria de mim sem a chuva de novembro (precoce) e meus “amigues”. Acho que tenho sérios problemas em fechar o ano. Não gosto muito de finalizações, eu acho. Mas, paciência. E meus amigos e amigas estão aí, para me fazerem crer que a poesia a tudo salva. Ou não. “Afinal, é melhor ficar calado e parecer tolo do que falar e acabar com qualquer dúvida” (de novo Groucho Marx). Chove. Ora, que venha o fim do ano. Meus amigos e amigas estão aí para me salvar. Tenho certeza. Não é, Zilma?
Alê Bragion é cronista, professor de Literatura