Armando Alexandre dos Santos
Tenho em mãos um almanaque português, publicado no ano de 1919 pelo Jornal de Notícias, da cidade do Porto. Estava-se, então, no auge da moda dos almanaques, e todo grande jornal timbrava em presentear seus assinantes, no final de cada ano, com um almanaque de, ao longo do ano seguinte, acompanharia os serões familiares e alimentaria as conversações caseiras. Naqueles tempos não havia televisão e o passatempo noturno das famílias era constituído pela conversação temperada com charadas, adivinhações, jogos de salão, pequenas leituras instrutivas ou humorísticas. Tudo isso eram os almanaques que proporcionavam.
Vejo, nesse almanaque mais do que centenário, uma interessante exposição de um caso concreto. Um rapaz muito bonito, e ademais poeta, era amado por três jovens. Às três ele cortejava, sem manifestar preferência por nenhuma delas. Cada uma delas se julgava a mais bela do trio e, portanto, a mais digna de ser amada pelo poeta. Depois de muito disputarem, resolveram obrigá-lo a se pronunciar com clareza sobre qual delas era a preferida.
O rapaz aceitou, mas pôs uma condição. Responderia em versos sem pontuação, elas que colocassem nos devidos lugares as vírgulas, os pontos e os demais sinais gráficos. Como elas concordaram, o poeta rapidamente escreveu, numa folha de papel, uma espinela, composição poética de redondilhas maiores em que têm a mesma rima os versos 1, 4 e 5, também rimam entre si os versos 6, 7 e 10, os versos 2 e 3, e os versos 8 e 9. É uma forma clássica de versejar, muito corrente em Portugal e na Espanha. Também aqui no Brasil muito a praticou Gregório de Matos Guerra.
Os versos do rapaz foram os seguintes:
Três belas que belas são
Querem que por minha fé
Eu diga qual delas é
Que ama meu coração
Se obedecer à razão
Digo que amo Soledade
Não a Júlia cuja bondade
Ser humano não teria
Não aspiro à mão de Iria
Que não tem pouca beldade
Soledade imediatamente se pôs a colocar a pontuação nos lugares que lhe pareceram indicados, e ficou contentíssima, pois se convenceu de que era a preferida do rapaz. Foi assim que ela pontuou a espinela:
Três belas, que belas são,
Querem que, por minha fé,
Eu diga qual delas é
Que ama meu coração.
Se obedecer à razão,
Digo que amo Soledade.
Não a Júlia cuja bondade
Ser humano não teria.
Não aspiro à mão de Iria,
Que não tem pouca beldade.
Quando foi mostrar o resultado a Júlia, porém, viu que esta não concordou, porque também se julgava a preferida. Para Júlia, a pontuação correta devia ser outra:
Três belas, que belas são,
Querem que, por minha fé,
Eu diga qual delas é
Que ama meu coração.
Se obedecer à razão,
Digo que amo Soledade?
Não. A Júlia, cuja bondade
Ser humano não teria.
Não aspiro à mão de Iria,
Que não tem pouca beldade.
Estavam as duas brigando para ver qual delas tinha razão, quando chega Iria, a terceira concorrente, certa também de ter sido a vencedora. Eis como ela pontuou os versos:
Três belas, que belas são,
Querem que, por minha fé,
Eu diga qual delas é
Que ama meu coração.
Se obedecer à razão,
Digo que amo Soledade?
Não. A Júlia, cuja bondade
Ser humano não teria?
Não. Aspiro à mão de Iria,
Que não tem pouca beldade.
Engalfinharam-se as três em renhida disputa, sem conseguirem se entender. O pomo da discórdia já não era qual delas era mais amada do rapaz, mas qual delas tinha pontuado melhor os versos. Resolveram, por fim, submeter o pleito ao próprio rapaz. Para decepção das três, e especialmente da terceira delas, a resposta do rapaz surpreendeu. Eis como ele pontuou os versos dos quais era autor:
Três belas, que belas são,
Querem que, por minha fé,
Eu diga qual delas é
Que ama meu coração.
Se obedecer à razão,
Digo que amo Soledade?
Não. A Júlia, cuja bondade
Ser humano não teria?
Não. Aspiro à mão de Iria?
Que! Não! Tem pouca beldade.
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Armando Alexandre dos Santos, Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.