Educação & Afins –     Identidade, não contradição e causalidade

Armando Alexandre dos Santos

 

No Ocidente, pouca gente conhece uma tradição muito antiga e respeitável na Índia, segundo a qual Aristóteles ali teria estado algum tempo, convidado por seu antigo discípulo, Alexandre, o Grande.

Alexandre havia recebido sólida formação aristotélica, que o habilitava a conversar e discutir, com superioridade, com os sábios dos mais variados locais por onde andou, nas suas guerras de conquista. Conhecia também, em profundidade, as variadas tendências dos numerosos sofistas e filósofos gregos, muitas vezes discordantes entre si. No Egito, em Israel, na Ásia Menor, na Pérsia, na própria Grécia, Alexandre conversou com sábios e sacerdotes de todas as religiões e de todas as filosofias de vida. Os princípios básicos da Lógica aristotélica, que havia absorvido e incorporado ao seu modo de ser e pensar, davam-lhe segurança para julgar, com clareza de espírito, os mais diversos ensinamentos que ouvia de sábios, anciãos e filósofos de seu vasto império, e com eles discutir, apontando as contradições de suas doutrinas e convencendo-os de suas posições. Aplicando os mesmos princípios – simples, lógicos e, como supunha, universais – jamais teve, nas conversações filosóficas, problemas de monta. Conseguia, sem dificuldade, convencer a todos da superioridade do seu sistema lógico, aprendido com o Estagirita.

Entretanto, quando chegou à Índia e foi conversar com os sábios brâmanes, a mente do grande Alexandre… entrou em curto-circuito! Não conseguiu entender nem fazer-se entender.

Como era possível raciocinar e trocar ideias lógicas com sábios que ignoravam completamente o princípio de identidade? Para Alexandre, dois grãos de areia, por mais idênticos que parecessem, seriam sempre dois e jamais poderiam ser um só; e a fortiori, duas pessoas sempre seriam duas, sempre conservariam sua plena individualidade. Para seus interlocutores imbuídos de panteísmo, entretanto, essas distinções não importavam; para eles, indivíduos não são pessoas, no sentido filosófico do termo, mas partes de um todo global que se confunde ao mesmo tempo com o universo e com a divindade, e a própria noção de individualidade era, para eles, ilusória; tampouco existem seres específicos e categorias genéricas, tudo se confundia na mesma “panrealidade”.

Por outro lado, como dialogar racionalmente com pessoas que levavam o relativismo ao ponto extremado de não ver lógica alguma no princípio da não contradição, segundo o qual uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e duas proposições contrárias não podem ser ambas verdadeiras?

E como desenvolver raciocínios mais complexos a interlocutores que nem sequer entendiam, do ponto de vista intelectivo, a necessidade do princípio da causalidade? Como podiam elas entender que todo efeito tem uma causa necessariamente anterior, se para elas o passado, o presente e o futuro se confundem, se não se preocupam em contar o tempo, mas apenas nele contemplam o simbolismo do suceder dos seus ciclos?

Alexandre tentou argumentar a partir de pontos de concordância comuns, como aprendera a fazer e sempre fizera com sucesso, mas nada conseguiu. Os brâmanes ouviam seus raciocínios mais lógicos sem nada entender, e afirmavam com a maior naturalidade coisas que pareciam disparates desencontrados e chocavam completamente o espírito aristotélico de Alexandre…

Este, então, resolveu apelar a seu antigo mestre.  Precisava de suas luzes. Escreveu-lhe, convidou-o a ir até a Índia e lhe ofereceu todas as facilidades para o deslocamento. Aristóteles sentiu-se desafiado, pois não podia imaginar que sua lógica, tão simples, tão coerente, tão elementar, fosse incompreendida por sábios… e dispôs-se a empreender a viagem, apesar de já estar próximo dos 60 anos de idade. Quando chegou à Índia e conversou pessoalmente com os brâmanes, num primeiro momento também não entendeu nada. Mas, quando tomou contato com doutrinas iniciáticas do misticismo brâmane, compreendeu que por trás daquela ilogicidade havia um sistema concatenado, profundamente contrário ao seu e potencialmente muito perigoso, pois negava radicalmente e subvertia todo o modo de ser e de pensar da própria racionalidade humana. Teria, então, recomendado a Aristóteles que destruísse completamente a Índia e não deixasse vivo a nenhum homem daquele povo, porque dele poderia surgir um veneno que destruiria não só o mundo helênico, com sua filosofia, sua cultura e seus valores, mas destruiria até mesmo a racionalidade do ser humano.

Tudo isso que acabei de relatar me foi contado por um intelectual brasileiro que viveu muitos anos na Índia, homem muito letrado e de grande cultura. Ele me afirmou que, nas tradições orais e nos escritos antigos da Índia está registrada a passagem de Aristóteles por aquelas terras, assim como o conselho drástico que deu a Alexandre – conselho que este obviamente não seguiu. Os missionários portugueses que a partir do século XVI ali foram trabalhar registraram essas memórias em seus escritos, os quais são, segundo meu informante, conhecidos e tidos como fidedignos na Índia. Na bibliografia ocidental, porém, nada encontrei a respeito, quer nas biografias e estudos sobre Alexandre, quer nos relatos biográficos sobre Aristóteles. Se algum leitor tiver alguma informação a respeito, agradeceria que me comunicasse, pelo e-mail [email protected].

Esse episódio – seja ele real ou não – de qualquer forma ilustra bem a importância dos princípios básicos de identidade, de não contradição e de causalidade para Aristóteles, assim como para toda a civilização ocidental. De fato, a Filosofia grega, da qual o mestre estagirita é coluna fundamental, as instituições jurídicas e administrativas de Roma e as tradições hebraicas presentes nas origens do Cristianismo são as matrizes da Civilização Ocidental e Cristã.

 

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

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