Justiça social não se faz  com justiça particular

Ribas de Lima

 

Pacotes de propostas legislativas em âmbitos municipais e estaduais desafiam a configuração institucional da federação brasileira e da separação entre poderes. Isso vai além da delimitação das competências pela Constituição e envolve a distinção entre estrutura e circunstância. Essa diferença, que separa justiça social da justiça particular, mostra-se basilar para a atuação pública.

Em 2022, por exemplo, os legisladores estaduais e municipais de todo o país propuseram a proibição de venda de alimentos com formato de genitálias por conta da oferta de doces com esses temas no Rio de Janeiro. Esse é apenas uma das muitas leis promulgadas em resposta a eventos particulares, e outros exemplos podem ser arrolados.

A Constituição de 1988 concentrou no Congresso Nacional a competência para estabelecer leis sobre as relações entre cidadãos comuns. Aos legisladores estaduais e municipais restou, a grosso modo, a promoção das políticas públicas concomitantemente à União, quando não regulamentar as leis federais à realidade local.

O primeiro desajuste, ostensivo, de leis como a que proíbe a venda de alimentos com formatos fálicos  reside na invasão da competência do Congresso por vereadores e deputados estaduais. Tais leis, ao versarem sobre temas polêmicos, dificilmente seriam votadas ou sancionadas em âmbito nacional.

A ocasião circunstancial que motiva as leis apontadas revela outro problema, mais sutil. Na modernidade, leis prestam-se à organização da comunidade, elegendo objetos e ações a serem protegidos para transpor as relações entre cidadãos à determinadas direções, como o desenvolvimento nacional e a dignidade de cada um.

Todo legislador deveria se ocupar de problemas estruturais, como a desigualdade social e saneamento básico, sem questionar a quem ou aos porquês deste. Essa abordagem genérica, que atende a todos e a ninguém, não resolve caso concreto, cujas especificidades exigem concreções e adaptações circunstanciais.

Esses legisladores acabam por redefinir a estrutura social precipitadamente, ao menos se dirigem a isso. Da perspectiva da peça, embora se atente à jogada, não se vislumbra o tabuleiro. Além de não compreender o todo, para conseguir efetivar sua jogada, eles passam a querer mudar as casas de lugares.

No entanto, essas jogadas, enquanto não revogadas formalmente, persistem, sendo obrigatórias aos servidores públicos. Os demais casos que não atendam à particularidade que objetivam essas leis têm seus pesos e consequências jurídicas prejudicadas.

Exceções passam a ser a regra, aprofundando a fragmentação política da sociedade. Agrava-se a frustração dos cidadãos de se espelharem nas leis locais, enquanto se autoriza, mais e mais, o oportunismo partidário e seu contraposto ativismo judiciário.

É preciso quebrar essa recursividade, caso for a vigência da república que se pretenda garantir.

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Ribas de Lima, autor do livro “Faces Públicas do Julgamento”, advogado, especialista em processo civil e mestre em direito constitucional.

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