Quando a lembrança não é confortante

Aldo Nunes

Há momentos na vida, especialmente no atual que nos é imposto pela Covid-19, que o nosso direito de ir e vir nos é limitado e somos obrigados a cultuar as lembranças, boas e más de um passado pelo qual, nós, já idosos, vivenciamos. Na minha juventude, quando ainda estudava economia e já dominava a área de custos, haja vista minha formação técnica em contabilidade, montei uma tabela para calcular qual o investimento necessário na pessoa humana desde a sua concepção até a sua capacitação para viver do trabalho próprio e tendo como sua provável morte, aos 60 anos de idade. Constava dessa tabela: os gastos necessários desde o período da gestação com as consultas médicas da mãe durante a gravidez; as despesas hospitalares e médicas quando do nascimento; a alimentação, vestimenta e custeio da saúde até os 4 anos; alimentação, vestuário, estudo primário, secundário e terciário até os 18 para possuir uma formação técnica que nos poderia conseguir algum trabalho remunerado. O estudo superior era privilégio dos mais capacitados financeiramente e, portanto, mais custoso, o que onerava ainda mais esse custo. Concluí que o investimento necessário era tão alto que o ser humano, considerando o que começaria a trabalhar aos 18 anos e chegaria até os 60 anos trabalhando, não ganharia o suficiente para reembolsar o seu custo, o que em economia caracterizaria ‘investir num ser antieconômico’.

Almejando cursar o mestrado e em seguida o doutorado em economia, consultei um doutor da área, meu conhecido e amigo, e para ele apresentei a minha tabela de custos do ser humano no Brasil e se eu conseguiria desenvolve-la como tese para minha defesa num possível doutorado. Depois de analisa-la ele me disse: “Eu não conheço nenhuma tese com esse tema. É um assunto muito delicado e que lhe trará muita dificuldade em conseguir um professor doutor que lhe dê apoio. Envolveria muito trabalho e morosidade, além de lhe indispor com religião e com a vida do ser humano. Vão lhe dizer que você é maluco. Desista dessa ideia. Ninguém lhe dará apoio”. Sua resposta me fez desistir da batalha, precisava mesmo era de renda para concluir meus estudos e aprender ainda mais sobre a vida. Hoje sei que pai e mãe criam muitos filhos, mas a maioria dos filhos não consegue reembolsar os custos que proporcionaram para os pais. Eu mesmo sou um deles.

Estamos atravessando uma das maiores pandemias mundiais causada pelo vírus corona, a princípio dito que ele tinha preferência pelos mais idosos, contudo as notícias mais recentes nos dão conta de que isso não é verdadeiro, ele está atingindo os humanos de todas as idades e numa velocidade além no nosso pensamento, estudado pela ciência cibernética, que se dedica ao estudo do sistema de controle e de comunicação nos organismos vivos (homens e animais) e das máquinas. Contudo, na entrevista de Mia Couto (Estadão, 13/05/20, caderno H1), escritor moçambicano, que também é biólogo, que em sua casa em Mabuto, acompanha a evolução da doença com um olhar científico, assim se manifesta: “Sou biólogo e não me conformo com a ignorância que mantemos sobre os vírus e as bactérias. Essa ignorância está muito ligada a uma visão antropocêntrica (doutrina que considera o homem como o centro do universo) que mantemos do mundo e da vida. Sabemos mais sobre o urso panda do que sobre os vírus ou sobre os morcegos que são os hospedeiros da maior parte dos coronavírus. E, no entanto, os morcegos foram capazes de desenvolver mecanismos imunológicos de modo a que não adoeçam mesmo com grandes cargas virais”.

Como já comentei em artigos anteriores, esse vírus trouxe abalo profundo em nossa vida e muito na economia local e mundial e, infelizmente, aqui no Brasil estamos já a ter que escolher pela vida e sem recursos financeiros para tal o que nos traz um dilema ainda maior, sem um entendimento necessário e mais rápido dos nossos três poderes (executivo, legislativo e judiciário). Sem o necessário bom senso da boa integração entre eles, quem mais sofre é o povo que dele não participa e fica sujeitando-se ao maior sofrimento. A lembrança é único meio disponível para extravasar essa nossa dor peitoral que nos pode, a qualquer momento, nos roubar a vida e trazer ainda maior sofrimento para aqueles que de nós depende.

A notícia ruim corre mais rápida que a boa e talvez quando a boa vier, não precisamos mais dela. Estou no ponto, fora do conforto, sujeito a ser tragado pelo desconforto, mas não quero que o momento desconfortante seja o meio de apagar minhas boas lembranças que procuro sempre dividir. A chuva mansa que cai nessa minha querida São Pedro, nessa hora que estou a encerrar o presente artigo, faz-me lembrar que o amanhã é um novo dia, sexta-feira, cuja chuva ainda quero que permaneça, trazendo a umidade necessária para um bom dia, e eu, aquele que adora falar do tempo, do clima, da lua, das coisas ocultas, mais uma vez afirmo, tudo passa, nada é eterno.

Aldo Nunes, contabilista, advogado, consultor e Agente Fiscal de Rendas aposentado do Governo do Estado de São Paulo.
E-mail: [email protected]

 

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