Armando Alexandre dos Santos
Ainda sobre o filme “Entre os muros da escola”, de Laurent Cantet, – um filme sugestivo e que incita à reflexão – aqui vão alguns esclarecimentos e comentários avulsos.
No caso da menina que se julgou ofendida, a tradução da legenda não foi bem feita. Quem conhece francês sabe que o professor usou um termo que tem sentido muito amplo, claramente querendo atribuir-lhe o significado de “desocupada”, “ociosa”, “pouco responsável” (sentido em que a palavra era mais usada na geração do professor), mas a menina entendeu no sentido pejorativo extremo, como “prostituta” (sentido em que, na geração dela, a palavra é mais geralmente aplicada). Na geração do professor, o sentido corrente do termo era bem menos agressivo do que no da menina. O que o cineasta parece ter querido mostrar, nesse pormenor concreto do filme, é a diversidade de interpretações de uma mesma palavra, de acordo com os usos e costumes de gerações e de ambientes sociais diferentes. Esse matiz, o tradutor da legenda não soube pegar.
Algo disso existe no português com a palavra “vadia”. Quando eu era ginasiano, em 1964 ou 1965, um professor podia perfeitamente dizer que uma aluna que não tinha feito sua lição era “vadia”. Não era elogioso, claro, mas estava muito longe de significar o que significa hoje, em que “vadia” tem no linguajar corrente sentido bem mais agressivo.
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Não me parece que o professor tenha pecado por excesso de rigidez. Pelo contrário, ele me pareceu quase sempre bastante flexível, incentivando os alunos a falarem, e aceitando até mesmo “numa boa” perguntas que, se fosse rígido, consideraria ofensivas, como quando um aluno perguntou algo que nada tinha a ver com a aula, sobre a orientação sexual dele.
Ele procurava dialogar a todo momento, procurava seriamente cumprir seu papel. Frequentemente, chegava ao verdadeiro heroísmo, diante de provocações, mantendo-se calmo e sempre procurando dialogar, muito embora seus argumentos fossem pouco eficazes para atingir os alunos. Na verdade, eles falavam quase línguas diferentes. Ele dizia coisas lógicas, mas de uma lógica que era inalcançável pelos alunos revoltosos.
O que me chamou a atenção era a “maioria silenciosa” da classe. O filme focaliza o antagonismo do professor e dos três ou quatro alunos que lhe faziam oposição acirrada; focaliza também um aluno chinesinho, que queria estudar seriamente, e um outro discente que hoje se chamaria “nerd” (nos meus tempos de ginasiano, a gíria para esses alunos aplicados era “caxias”). Todos os outros alunos faziam parte da “maioria silenciosa” e não se manifestaram, pelo menos ativamente.
Não fica claro, no filme, que efeito produziam as falas do professor nessa maioria. Todo o enfoque do filme está nos opositores, como se eles fossem representantes autênticos da totalidade do corpo discente. Ora, pela experiência de sala de aula e pela experiência de vida, sabemos muito bem que, numa dinâmica de grupo, nem sempre os que se manifestam, falam e assumem o protagonismo realmente exprimem o sentimento e o entendimento da maioria.
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Já há vários anos não estou mais lecionando no Ensino Médio, mas lecionei muito tempo nesse nível. Eu sempre procurava estimular o contraditório, desde que respeitoso, de parte a parte. Eu dizia aos alunos que quem fizesse em sala uma pergunta original e bem feita sobre a matéria, receberia um ponto positivo na média; se fosse uma pergunta tão difícil que eu não soubesse responder na hora, e precisasse estudar para responder depois, o aluno ganharia dois pontos positivos; e se o aluno me corrigisse e apontasse algum erro no que eu estava dizendo, ganharia três pontos positivos. Eu sempre dizia para a meninada: “Desconfiem muito de professor que acha que sabe tudo; quase sempre é um ignorante que tem medo de ser desmascarado”…
Eu também dizia que o melhor e mais divertido modo de infernizar a vida do professor não é fazendo bagunça na sala, como crianças, mas é estudando bem a matéria que o professor vai expor e mostrando que o professor está mal informado, ou não sabe bem a matéria… Aí é que a contestação fica divertida! E contava a eles coisas que eu mesmo fiz, quando adolescente, que deixava meus professores muito atrapalhados…
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Ainda sou do tempo em que os melhores alunos ganhavam medalhas “de honra ao mérito”, tinham seus nomes inscritos nos “quadros de honra“ e recebiam prêmios estimulantes. Atualmente, critica-se muito a meritocracia nos ambientes escolares. Não concordo com essas críticas. Não há mal algum em que o ensino seja meritocrático. Desde os tempos da velha Paideia grega ele foi sempre meritocrático, por mais que isso hoje em dia pareça “politicamente incorreto”. Mesmo na atualidade, países que têm alcançado grande desenvolvimento no ensino, como Chile, Coreia do Sul, Finlândia e outros mais, são altamente meritocráticos. O errado é supor que o reconhecimento do mérito dos melhores humilhe e desestimule os menos bons; pelo contrário, estimula-os.
Tudo na vida é meritocrático, queiramos ou não. Cada um de nós sempre colhe o que plantou, em todas as etapas da vida, desde o nascimento até a morte. Não me parece realista fazer uma escola que fuja dessa regra geral. Alunos que saiam da escola sem entender que a realidade é essa, sairão despreparados para enfrentar a vida, tal como de fato ela existe.
O reconhecimento do mérito e do demérito são consequência da liberdade humana. Os regimes não meritocráticos são, quase sempre, ditaduras.
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Uma película ambientada em outro país, mas em contexto psico-sociológico parecido é “Escritores da Liberdade”. Verdadeira obra-prima do cinema. Havemos de comentá-la em outra ocasião.
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.
Frase a destacar: Tudo na vida é meritocrático, queiramos ou não. Cada um de nós sempre colhe o que plantou, em todas as etapas da vida, desde o nascimento até a morte.