Documento – Registros contábeis do ‘Mercadão’ preservam o cotidiano da cidade

1- Maura Usberti: “Temos o hábito de conhecer os clientes pelo nome dele e da família”; 2- Thaís Gabriele, presidente da associação: “O nosso desafio é trazer cada vez mais pessoas”; 3- Marcela Herling, administradora do Mercadão: “Buscamos sempre o diálogo”; Alimentos – como o tradicional pastel e produtos vendidos a granel — comercializados no Mercadão refletem o cotidiano da cidade

 

Sessenta e nove cargueiros de aguardente, ao preço de tabela de 20$000, vinte réis, o valor unitário, totalizando 1:380$000, um conto e trezentos e oitenta réis; o que gerou 41$400, quarenta e um e quatrocentos réis, de impostos. Esse é o primeiro produto catalogado no documento ‘Movimento e receita da Praça do Mercado’ durante o mês de julho de 1888, “desde 5 até 31”, como delimita o administrador José Julio Cézar Huffen-Baecker, no registro contábil enviado à Câmara Municipal, com data de 3 de agosto.

É icônico –- talvez até ‘destino-manifesto’ –- que uma aguardente tenha sido o primeiro produto descrito na contabilidade do mercado; alimentos, comidas e bebidas, carregam o traço cultural de um povo, e o ‘Movimento e receita’ reúne estes elementos, ao registrar, não apenas, quais eram, mas também as suas formas: como ‘meio alqueire de arroz com casca’ e ‘23 alqueires de batata-doces’, ‘18 résteas de alho’, ou até mesmo ‘sete cabritos’, ‘74 frangos’, ‘18 leitões’; quem não imaginou estes animais sendo levados inteiros depois do abate para ser cortados no açougue?

Os 135 anos do Mercado Municipal de Piracicaba, celebrados em 5 de julho, abrem a oportunidade de vivenciar um pouco como era a cidade no final do Século 19 e como que as comunidades, cada um a seu tempo, e à sua maneira, deixam marcas indeléveis nas gerações futuras.

“O administrador do mercado, ao preencher essa primeira folha de registro, certamente o fazia de forma trivial, obedecendo a burocracia da norma, e não fazia ideia da dimensão histórica que essa folha de papel ganharia com o passar dos anos, das décadas e dos séculos seguintes”, reflete Bruno Didoné de Oliveira, servidor do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara, responsável pela pesquisa que gerou a ‘Coleção Especial’ disponível no Sistema ATOM, que pode ser acessada pelo site oficial do Legislativo piracicabano, com 104 documentos. O assunto é destaque, também, de mais uma edição da Série Achados do Arquivo, publicado às sextas-feiras.

“Esse livro com os primeiros registros de movimento do mercado é uma verdadeira preciosidade, traz para a atualidade uma possibilidade de se dimensionar como era o aspecto social da época e até mesmo a atmosfera daquele, até então, novo espaço de comércio. Um pedaço de papel que nos permite acessar e visualizar um pouquinho do que se plantava, do que se criava, do que se bebia e do que se comia naquela Piracicaba”, reflete.

Mesmo que o telhado e o piso tenham sido reformados, que a iluminação seja mais fria, e que no açougue que Maura Usberti Ometto administra com o marido Marcos Antonio Ometto as carnes estejam dispostas no balcão refrigerado em forma de linguiças, salsichas e em recipientes plásticos, nos dias atuais ainda há uma aura permanente do Mercado do Século 19. Quando se entra naquele ambiente, parece uma máquina do tempo.

“É muito gostoso trabalhar aqui; temos ainda o hábito de conhecer os clientes pelo nome dele e da família, já que alguns clientes hoje são o neto do primeiro parente que está vindo aqui fazer compras”, diz Maura, com uma voz mansa, no ritmo do Mercadão. O açougue está na terceira geração de sua família. Foi adquirido pelo avô, José Alberto Usberti, há cerca de 88 anos, e, depois, assumido pelo seu pai, Henrique Usberti Neto.

Essa relação próxima das pessoas com o Mercadão é definidora para a manutenção do espaço com a mesma função desde 1888. Maura é uma das fundadoras – e por muito tempo, foi tesoureira –- da Associação de Comerciantes que, desde 2010, celebrou uma parceria com a Administração Municipal para desenvolver um modelo de gestão público-privado.

“Depois da associação, muita coisa melhorou. Passamos a investir mais na estrutura do Mercadão, como a reforma do piso e do telhado”, lembra Marta. São pessoas como ela – tão ligadas intimamente com o lugar – que nos anos 1980 bateram o pé e atuaram fortemente, com apoio da Câmara e da Prefeitura, para evitar que o prédio fosse vendido à iniciativa privada.

O modelo de parceria público-privada acabou sobressaindo e possibilitou a quem vive o dia a dia do Mercadão a capacidade de administrar os cerca de 400 funcionários que trabalham diariamente em 150 boxes, divididos 58 estabelecimentos comerciais. “Procuramos sempre definir nossas ações com muita conversa, sempre buscando o que é melhor para a maioria daqueles que atuam aqui”, destaca a administradora Marcela Herling.

Thais Gabriele Magro é a atual presidente da associação. Jovem, ela trabalha na pastelaria da família “desde que se conhece por gente” e sabe que o que mantém viva a história do Mercadão não é somente o prédio – tombado pelo Codepac (Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Piracicaba) –, mas o que ele produz de efeito social na cidade. “O nosso desafio é trazer cada vez mais pessoas, fazendo com que venham moradores de perto, de longe e também de turistas”, reflete.

As necessidades do Mercadão também estão relacionadas às transformações no entorno, como a dificuldade de estacionamento, um problema muito comum na região central de Piracicaba. “Essa é uma questão que temos: gostaríamos de ter um espaço exclusivo para quem vem ao mercado”, destaca, ao acreditar que, com o novo sistema de Zona Azul, “é possível que melhore, mas não resolve o problema por completo”.

Em meio a tantas idas-e-vindas, o Mercadão segue a sua história de 135 anos. Segue com suas demandas; com o seu aroma peculiar; segue como uma marca de ‘aconchego social’. Segue com o seu cotidiano; da comercialização das frutas e legumes, passando pelo tradicional pastel, assim como com venda de utilidades para casa, fumo, confeitarias, entre tantos outros.

Mas assim como os primeiros servidores, nomeados para aquele primeiro mês de funcionamento em 1888, os atuais administradores, funcionários e permissionários vivem o dia a dia, com suas atividades diárias, imbuídos nos afazeres da vida, repleta de sonhos e cansaço. No Mercadão, tudo o que é registrado ecoa na História dos tempos que virão.

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