Concluí meu último artigo, na Tribuna Piracicabana, dizendo que existe uma contradição interna na trilogia da Revolução Francesa, por onde ela, além de ambígua e acobertadora de crimes e injustiças históricas, é também contraditória e utópica. Não era minha intenção me aprofundar nesse particular, mas um simpático pedido que chegou por e-mail, de uma leitora muito prezada da nossa coluna, me faz retornar ao tema.
O lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” embute uma contradição interna. Considerando-se a natureza humana como ela é na realidade, é fácil constatar que os homens não apenas são desiguais em seus talentos e virtualidades, mas ainda quando colocados em situações de paridade comportam-se de modo diferente. Isso se forem livres, claro. Não é possível haver liberdade sem que dela decorram desigualdades.
O único modo de assegurar a igualdade é violentando a liberdade. Não é preciso dar exemplos na História, nem em países de nosso tempo, dessa realidade. Na verdade, Liberdade e Igualdade são conceitos antitéticos que não podem coexistir se entendidos ambos na mesma plenitude. Para coexistirem, há que sacrificar um dos dois, ou os dois.
Também à Fraternidade a Igualdade de certa forma se opõe. Fraternidade, amor, amizade, solidariedade etc. são coisas que só podem existir entre diferentes. Se não houvesse diversidade entre os seres humanos, se todos fossem iguais como duas gotas de água o são, não haveria complementaridade, não haveria visões diferentes que se completam, não haveria a menor possibilidade de praticar a caridade e o amor. É a diversidade que produz condições em que nos conhecemos melhor, em que nos completamos, em que nos amamos. Um casal que, por absurdo, gerasse 10 filhos absolutamente iguais, teria gerado 10 clones que jamais constituiriam uma fraternidade. Seria como um piano em que todas as teclas tivessem a mesma nota. Seria incapaz de produzir qualquer harmonia.
Marx entendia que o primeiro passo para a implantação do socialismo pleno seria a instalação de uma ditadura do proletariado. Tal ditadura era inevitável, segundo ele, mas não deveria ser permanente. Na ótica marxista, a ditadura do proletariado conseguiria, por meio da educação socialista das novas gerações, modificar profundamente a natureza humana, de tal forma que fosse possível conciliar a plena liberdade com a total igualdade. O homem novo produzido pela educação socialista e liberto de laços familiares seria capaz de superar o próprio egoísmo, de modo a se dedicar à coletividade com o mesmo empenho com o qual normalmente as pessoas se empenham para o próprio benefício e dos seus. Assim se superaria, na visão teórica e utópica de Marx, a oposição entre Liberdade e Igualdade, dois conceitos expressos no lema clássico da Revolução Francesa.
Na realidade, onde existe liberdade como valor supremo, e onde cada indivíduo procede livremente de acordo com sua vontade, é inevitável que surjam desigualdades; e se a igualdade é imposta como ideal supremo, desaparece forçosamente a liberdade. Igualdade total e liberdade plena são predicados inconciliáveis. Ou se impõe a igualdade e a liberdade vai pelos ares, como nos regimes socialistas e comunistas, ou se respeita a liberdade e as diferenças surgem naturalmente. As diferenças sociais não são um mal em si, o mal está nos seus excessos. Se as diferenças forem harmônicas e proporcionadas, são um bem, pois estimulam ao progresso, ao trabalho, à autossuperação. Se a ninguém faltar o necessário, qual é o mal de haver diferenças?
O marxismo imaginava que na fase da ditadura do proletariado se sacrificaria a liberdade, mas apenas provisoriamente; um regime em que o proletariado governasse ditatorialmente poderia, por meio da educação das novas gerações, chegar rapidamente à constituição de um “homem novo” socialista, desprovido de interesses privados opostos ao interesse coletivo. O egoísmo que tradicionalmente movia os indivíduos seria, então, aplicado ao bem comum, ao interesse coletivo. Atingido esse estágio evolutivo, a ditadura do proletariado deixaria de ser necessária; chegaria então o processo ao seu final, com o estabelecimento de uma sociedade sem classes, na qual todos seriam iguais e viveriam livres e em perfeita felicidade. Ter-se-ia, então, perfeitamente realizável e sem utopia, um regime em que coexistiriam a perfeita liberdade e a completa igualdade.
Essa esperança, que embalou gerações sucessivas de comunistas e socialistas, teve importância política enorme ao longo do século XX, com a imensa força aglutinadora e arregimentadora que as utopias têm. São irrealizáveis, mas assinalam rumos, são balizas orientadoras poderosíssimas.
A realidade social implantada pelos regimes comunistas é bem diferente das suas apregoadas promessas: a imensa maioria da população vivendo na miséria, e uma pequena nomenklatura gozando de privilégios enormes. A falta de liberdade, a ditadura mais feroz, a total ausência de respeito aos direitos humanos mais fundamentais, os genocídios e os Gulags (campos de prisioneiros submetidos a trabalhos forçados), tudo isso foi justificado pela historiografia comunista, como uma fase indispensável da evolução humana, rumo à liberdade que, num futuro remoto, poderia coexistir com a perfeita igualdade. Deu no que deu. Não podia ser de outra forma.
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.
Frase a destacar: Ou se impõe a igualdade e a liberdade vai pelos ares, ou se respeita a liberdade e as diferenças surgem naturalmente.