Adelino Francisco de Oliveira
O cenário sombrio, produzido pela disseminação da pandemia de Covid-19, coloca-nos, existencialmente, diante da fragilidade e da transitoriedade da vida. O quadro geral, demarcado pela realidade iminente da doença, da falta de recursos materiais e, no limite, da própria morte, tende a gerar aflição, incertezas e múltiplas angústias. Talvez pouco tem sido refletido acerca dos impactos emocionais dessa experiência tão traumática.
A Páscoa cristã tem, justamente, algo muito profundo a dizer sobre todo esse momento que as sociedades vivem hoje. A experiência de isolamento, abandono, de fracasso e de morte são dimensões também presentes na narrativa do mistério pascal. Jesus, ao se deparar com realidades limites em sua trajetória, aponta caminhos de superação.
Em uma aproximação hermenêutica da Páscoa, torna-se possível se contemplarem lições e mensagens que avançam ao menos para três direções fundamentais, a se complementarem na formulação de uma nova concepção sobre a vida: a dimensão ética, o aspecto político e a perspectiva escatológica.
A Páscoa de Jesus traz uma proposta ética, centrada em uma existência de entrega e despojamento, amor gratuito e serviço ao próximo. Jesus apresenta uma maneira específica de comportamento, que deve orientar as relações interpessoais. A sociabilidade que nasce da Páscoa cristã é profundamente aberta, solidária e sensível à situação do outro. Desdobra-se desses conceitos um convite existencial, portanto ético. Na vivência deste difícil momento de pandemia, a visão de ética cristã revela-se na postura cotidiana de cuidado e solidariedade. Este é um caminho muito interessante, na medida em que abre um prisma de leveza e beleza às relações.
Todos os eventos que perpassam a Páscoa de Jesus trazem como perspectiva de fundo uma ousada compreensão de poder. A oposição aos vendilhões do Templo, que exploravam a religiosidade dos mais pobres; a entrada em Jerusalém, montado em um pequeno jumentinho, em um gesto de total desprendimento; as narrativas em torno da ceia pascal, particularmente a cena do lava-pés, ressaltando a nobre humildade, a fraternidade e o poder como serviço. Em todos esses acontecimentos, o aspecto político aparece na proposição de novas estruturas sociais, alicerçadas nos princípios de justiça, igualdade e direito. Na proposta pascal de Jesus, o poder somente alcança sentido se colocado como serviço ao outro, caracterizado como instrumento para a construção do bem coletivo. Este é um ponto chave, na medida em que nos provoca hoje a também buscarmos estruturas sociais que sejam capazes de dividir, incluir e cuidar da vida, universalizando direitos.
A perspectiva escatológica consiste na dimensão que acaba por conceder autoridade e critério de discernimento, tanto para o campo da ética quanto para o da política. A experiência da ressurreição representa o horizonte absoluto da transcendência. A vida não se esgota na materialidade. A morte é mera passagem. O olhar da transcendência possibilita perceber a relatividade das relações de poder e da posse dos bens materiais. A vida é o bem central, por se revelar como inesgotável transcendência. Somente a experiência transcendental do amor deve ser universal e absoluta. No contexto da pandemia, diante da angustiante realidade de múltiplas formas de sofrimento, torna-se fundamental a ponderação acerca do sentido maior da existência.
A crise sanitária provocada pela pandemia de Covid-19 impõe grandes desafios para as sociedades. É hora de repensar as relações humanas e as estruturas sociais. Oxalá a experiência da Páscoa Cristã, vivida agora sob a evidência dos limites e fragilidades próprios da condição humana, seja inspiradora para a construção de um novo tempo, articulador de uma outra sociabilidade, demarcada, sobretudo, pelo sentimento de fraternidade e pelo apreço pela justiça, direito e liberdade.
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Adelino Francisco de Oliveira, professor no Instituto Federal, campus Piracicaba; Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências da Religião; [email protected]