Cinema Paradiso e a imagética da saudade

Marcelo Pereira da Silva

 

Não é novidade para ninguém que a palavra “saudade”, enquanto definição, é uma das mais difíceis de se traduzir em outras línguas. Mas ela existe, não como uma invenção da Língua de Camões, mas como uma condição inevitável da natureza humana, diante das lacunas deixadas por antigas ocupações afetuosas. Talvez, uma das razões pelas quais a saudade possua esse ar inexprimível seja o fato de, geralmente, a traduzirmos através das imagens do que foi e de como foi, com maior ou menor fidelidade – a depender do tempo corrido e da potência de nossa memória. Sim, a saudade é sensorial, sendo a visão, logo, a imagem, um dos meios mais recorridos para acessá-la: lembrar algo é, de algum modo, visualizá-lo mentalmente.

Um dos exemplos mais interessantes se dá no premiado filme Cinema Paradiso (1988), dirigido por  Giuseppe Tornatore. Trata-se de uma das maiores – se não, a maior – homenagem feita à Sétima Arte. Nele, conhecemos a vida de Salvatore, um menino que começa, desde muito cedo, a nutrir um encanto com o mundo das imagens em movimento. Apoiado por Alfredo, o projecionista do vilarejo, aprende essa profissão no local cujo título dá nome ao filme, enquanto alimenta uma amizade que já não os une pelas funções atribuídas, mas pela compatibilidade de realidade e possíveis expectativas. Após um tempo, Salvatore acaba crescendo, mudando de cidade – sem olhar para trás, a pedido do próprio Alfredo – e se torna um cineasta de sucesso. Nada poderia trazê-lo de volta. Ou quase. Alfredo morre.

Seu retorno se dá sem grandes empecilhos, afinal, o que um vilarejo transformado pelas mãos da modernidade poderia trazer de tempos sepultados? Engano. Salvatore, percorrendo o cortejo, reconhece nos rostos – mesmo os distorcidos por rugas – sorrisos familiares, contidos, que esperam uma espécie de reciprocidade: correspondidos, se abririam; ignorados, ao menos, poderiam mostrar gentileza. Aquele homem importante lembraria desses seres? E do antigo cinema, seu segundo lar, o local que testemunhou Totó – seu apelido de infância – virar Salvatore, enquanto compartilhava seus anseios com o velho amigo? O que teria acontecido a ele? Sim, se recorda. Porém, em tempo, chega para dois velórios: de Alfredo e do Cinema Paradiso.

Essa é uma das cenas – em minha opinião – mais melancólicas da obra. Todos se reúnem para ver, pela última vez, o Cinema Paradiso em pé, já que tivera o terreno vendido para outros fins, após ter sido levado à falência. O espaço que, até então, projetava imagens de tantos mundos aos olhos atentos de seu público, agora exibe uma última imagem, feita de sua demolição e restos de si pelos ares – a poeira. Nesse momento, aqueles personagens conhecidos que, em suas diferenças, se relacionavam, interagiam, casavam-se, brigavam, matavam e morriam, tudo isso no mesmo local, o Paradiso, perdem seu ponto de encontro para assumirem suas vidas fora dali, juntos ou separados, a depender das forças dos laços que criaram enquanto viam Clark Gable ou Greta Garbo. O fim de uma era.

Todos lidamos com alguma espécie de saudade. Com alguma demolição de nossos Paradisos – os fatos da vida que sucumbiram pelos cursos naturais de nossa existência – ou pelos Alfredos que perdemos, amigos/familiares queridos que nos construíram como pessoas – enquanto nós, tal como um cansado projecionista, nas épocas em que os filmes eram películas, girávamos nossas manivelas a fim de não permitir que a vida parasse. Porém, uma coisa é certa: ficam as imagens, esses meios que a memória, sem necessidade de compromisso com o tempo e espaço, reúnem remendadas, nos trazendo picos de sentimentos semelhantes aos dos primeiros momentos em que foram captadas pelos olhos. Tal como na última cena do filme – que não descreverei, para não dar mais spoilers – poderemos, em outras telas, feitas desse hoje construído, revisitar e relembrar quem somos e o que nos trouxe aqui.

É, realmente é difícil definir a saudade… Não culpemos os outros dicionários.

 

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Marcelo Pereira da Silva, escritor, professor, palestrante e ator

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