Trilogia revolucionária

 

Armando Alexandre dos Santos

A trilogia “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, adotada como lema e programa político pela Revolução de 1789, foi inscrita nas armas oficiais da república francesa. Até hoje o adotam todos os que, de uma forma ou de outra, se consideram herdeiros da mesma Revolução.

De fato, cada um desses termos pode ser analisado separadamente, mas somente se os analisarmos no seu conjunto, constituindo um só todo, constituindo um programa de vida e de organização da sociedade, eles podem ser bem compreendidos e analisados.

O lema “liberté, egalité, fraternité” foi, pela primeira vez, usado por Maximilien de Robespierre, o famoso e sanguinário líder revolucionário, num discurso que proferiu na Assembleia Nacional Constituinte em 5 de dezembro de 1790. Quando se tratava da constituição da Guarda Nacional, discutia-se se todos os cidadãos deviam ser recrutados para ela, ou se o critério de recrutamento devia ser censitário, ou seja, somente os mais ricos deveriam ser convocados. Robespierre defendia que todos, ricos e pobres, deviam ser convocados em armas para defender as conquistas revolucionárias.

Note-se que até então, tradicionalmente e desde a Idade Média, sempre se entendeu que o exercício militar era privativo da nobreza. Os nobres não pagavam impostos em dinheiro, mas o pagavam em sangue. Era o famoso “impôt du sang”. Era dever do nobre lutar. O plebeu pagava imposto, mas não era obrigado a lutar, não podia ser convocado para servir militarmente. Era uma distribuição equilibrada de direitos e deveres, fundada na antiga sociedade de ordens, vinda da Idade Média. Agora, com a Revolução Francesa, todos ficavam iguais. Paradoxalmente, a Revolução, pregando a igualdade, começou por tirar do povo um direito e lhe impor um dever: tirou dele o direito de ser defendido pela nobreza, e lhe impôs o dever de lutar e morrer pela nação.

Em resumo, a Revolução fez com que os plebeus continuassem a pagar o imposto em dinheiro e passassem a pagar também o do sangue. Transcrevo, a respeito, trecho de um interessante artigo de dois juristas espanhóis, Atahualpa Fernández e Marly Fernández:

“Note-se que a fraternidade significou um ideal de emancipação que foi parte do programa político de Robespierre, autor da divisa “liberdade, igualdade, fraternidade” que, em seu famoso discurso de 5 de dezembro de 1790, defendendo os direitos do homem e do cidadão contra o sistema censitário que pretendia aplicar-se à Guarda Nacional, apareceu por vez primeira na história universal da humanidade. No projeto de lei alternativo com que Robespierre concluía seu discurso, se determinava que todos os cidadãos maiores de 18 anos – e não somente os ricos – seriam, de direito, inscritos na Guarda Nacional de sua comuna; que esses guardas nacionais seriam as únicas forças armadas empregadas no interior, e não o exército herdado do velho regime; que, em caso de agressão exterior, competiria aos cidadãos em armas, e somente a eles, o defender-se. E que, finalmente, levariam sobre o peito e em seus estandartes estas palavras: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. O deputado Robespierre, que vinha lutando sozinho desde há alguns meses contra a distinção, aprovada em câmara, entre “cidadãos ativos” (capazes de pagar um censo) e “cidadãos passivos” (pobres), voltava agora à carga, e nada menos que em um ponto politicamente tão sensível como o caráter de classe da futura Guarda Nacional.” (Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, “Fraternidade e a Boa Sociedade”, www.investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/politica)

Sinceramente, não entendo como se pode falar em liberdade, em fraternidade e em igualdade no contexto da Revolução Francesa.

Como falar em Liberdade numa época em que, aberrando de toda a norma jurídica e de todo o bom senso, se criou a famosa “Loi des Suspects” (Lei dos suspeitos), segundo a qual bastava alguém ser acusado de ser contra-revolucionário para tornar-se suspeito de traição contra o povo francês; e bastava tornar-se suspeito para ser condenado à morte?
A prova do “crime” era considerada dispensável… Bastava haver uma suspeição e já a cabeça rolava.

Como falar em fraternidade com centenas de milhares de mortos, num rio de sangue pavoroso? Montalambert escreveu, com razão, que a Revolução Francesa foi um rio de sangue que dividiu a França em duas partes e continuará a dividi-la para todo o sempre, pois a ferida que abriu jamais se cicatrizará.

E como falar em igualdade se a própria Revolução Francesa negou, aos negros do Haiti, o direito de voto que, no entanto, considerava direito fundamental de todo ser humano?

Vemos, pois, que essas três palavras tinham, na utilização que delas faziam os primeiros revolucionários, um sentido bem diverso do que geralmente entendemos nós, hoje em dia. Era um sentido amplo, ambíguo, aplicável a seu bel-prazer, conforme suas conveniências políticas e ideológicas. Essa mesma ambiguidade, essa mesma multiplicidade de sentidos, continua ainda hoje sendo utilizado com a mesma latitude, tanto por políticos de Direita como de Esquerda.

Veremos alguns exemplos na próxima semana.

 

 

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

Frase a destacar: Como falar em igualdade se a própria Revolução Francesa negou, aos negros do Haiti, o direito de voto que, no entanto, considerava direito fundamental de todo ser humano?

 

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