Respondendo a uma pergunta que o Sr. Brockman não me fez

Armando Alexandre dos Santos

John Brockman, nascido em 1941 na cidade de Boston, é um agente literário que administra as edições de livros de importantes cientistas. É também autor de um livro que se tornou best seller, intitulado “As maiores invenções dos últimos dois mil anos”. Essa obra foi elaborada a partir de consultas feitas por Brockman a um grande número de pessoas que ele considerou aptas a emitirem uma opinião de valor sobre o tema proposto. As respostas eram dadas abertamente, ou seja, cada um dos que emitiram opinião sabiam o que todos os demais haviam escrito.

Não fui, evidentemente, consultado pelo Sr. John Brockman, que com toda a certeza nem sabe da minha existência. Mas não pude deixar de fazer, à maneira de exercício de redação, um texto que lhe teria mandado caso ele me tivesse colocado na sua lista de consultores. Aí vai.

Prezado Sr. John Brockman,

Respondo, de bom grado, à pergunta que fez, sobre qual a invenção que considero a mais importante nos últimos dois mil anos.

Sua pergunta, Sr. Brockman, é instigante e, confesso, fui muito tentado a respondê-la de modo brincalhão, entregando-me ao delicioso passatempo de brincar com as ideias, as frases e as palavras – como, aliás, noto que fizeram muitos dos que já responderam ao seu questionário.

Seria fácil e agradável sustentar, por exemplo, que o invento mais importante desse dilatado período foi a anestesia dentária, o vaso sanitário, a ratoeira, a pólvora, a caravela, a caneta-tinteiro, o relógio de pulso, o computador ou o papel-moeda, para falar somente desses (seria fácil, com efeito, elencar mais 200 ou 300 semelhantes). Cada um deles se prestaria a considerações muito próprias a preencher agradavelmente o espaço de um artigo de jornal, tanto para quem o escreve quanto para quem o lê. Cheguei preparar um trabalho, que mais tarde ainda publicarei alhures, sustentando que a invenção mais importante foi a do cartão-postal, porque deu início à ladeira descendente que conduziu o gênero humano das velhas e tradicionais cartas manuscritas até o e-mail, o twitter e as mensagens que nos torpedeiam continuamente pelos celulares. Nessa degringolada que se vem desenrolando há um século e meio, desde que por volta de 1870 alguém teve a ideia de imprimir o primeiro cartão-postal, não foi somente uma arte tradicional e um gênero literário bem definido desde a Antiguidade que tende a desaparecer, mas foi toda uma forma de comunicação humana que vem sendo devorada pela vertigem da velocidade, incentivada pelo vício capital da preguiça e imposta, implacavelmente, pelas condições da vida moderna.

No entanto, Sr. Brockman, relendo com cuidado o seu pedido, vejo que ele exige uma resposta bem séria, bem pensada e bem fundamentada. Em outras palavras, exige uma resposta filosófica, ou pelo menos “filosofada”…

Por outro lado, julgo que, na resposta a sua pergunta, por “invenção” deve-se entender não somente aquilo que se convenciona chamar de invenção no sentido moderno do tempo – ou seja, aquilo que é passível de registro no Instituto de Patentes e Marcas – mas toda forma de descoberta e, ainda mais amplamente, tudo quando, em todos os campos, significa novidade nos horizontes do espírito humano.

Respondo-lhe, pois, que no meu modo de entender a mais importante das invenções humanas dos dois últimos milênios foi a da noção da fraternidade universal, decorrência imediata da instituição do Cristianismo. Essa instituição se deu, como é bem sabido, na primeira metade do século I da Era Cristã.

O Cristianismo foi, realmente, a primeira religião de cunho mundial, que desde o seu início pretendeu atingir e conquistar toda a Humanidade e, assim, inaugurou a ideia de que o gênero humano (entendido no sentido mais amplo, no espaço e no tempo) tem uma relação fraternal, por cima de todas as barreiras e distâncias estabelecidas pelas diversas nacionalidades.

“Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura. O que crer e for batizado, será salvo; o que, porém, não crer, será condenado” (Mc, 16, 15-16) – disse Jesus aos Apóstolos.

Até o aparecimento do Cristianismo, todas as religiões e todos os deuses eram nacionais. Mesmo entre os hebreus, a religião mosaica era entendida como algo exclusivo do povo de Israel, e isso se consolidou de tal maneira que, entre os Apóstolos e os primeiros discípulos de Jesus Cristo, houve grande resistência psicológica à ideia de uma pregação aberta a todo o gênero humano, fora dos limites do Povo Eleito. O livro dos Atos dos Apóstolos narra a conversão de Cornélio, o centurião romano batizado por São Pedro, e a profunda estranheza que tal fato causou entre os primeiros cristãos, que não compreendiam como Pedro, sendo judeu, podia ter sequer entrado na casa de um pagão e com ele tomado uma refeição.

Um grande historiador eclesiástico do século XIX, Dom Prosper Guéranger, chegou a afirmar que o próprio sentido da História Geral da Humanidade é uma noção que teve início com o Cristianismo, sendo desconhecido antes de Jesus Cristo: ”Os historiadores dos gentios não têm uma visão de conjunto dos acontecimentos humanos. Para eles, a ideia de pátria é tudo, de tal forma que o tom do narrador nunca permite supor que ele se sinta tomado, um pouco que seja, por qualquer sentimento de afeto pela espécie humana, considerada em si mesma. Com efeito, a história só começou a ser tratada de maneira sintética e geral a partir do Cristianismo; remetendo constantemente o pensamento para o destino sobrenatural do gênero humano, o Cristianismo habituou-nos o espírito a ver para além do círculo estreito de uma nacionalidade egoísta. Foi em Jesus Cristo que a fraternidade humana se revelou, e foi desde então que a história geral passou a ser objeto de estudo” (Le sens chrétien de l´Histoire. Paris: Librairie Plon, 1945, p. 17).

Essa noção de fraternidade universal, novidade da Era Cristã, tem uma importância tão evidente que, acredito, dispensa mais comentários. Julgo ter, pois, respondido suficientemente a sua pergunta. Sem mais, pois, despeço-me cordialmente.

 

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Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

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