A dádiva do pão dado

Camilo Irineu Quartarollo

 

A criança pobre tem reações viscerais e se percebe o que é realmente um dos instintos de sobrevivência, a fome. Entretanto, há o caso do menino de rua ao qual lhe deram um lanche para comer. Ele olhava o lanche e não comia, não devorava como faminto, embora o vissem azul de fome. Por que não come? Coma! Então o seu comer foi devagar, parcimonioso, sem agredir o alimento, olhando para o pão como se o pão olhasse para ele, reverente. Depois disse que estava muito feliz e não queria que o lanche acabasse logo, por isso a reverência e o sorriso que partilhava.

Ao nascer já se sente fome, o seio sagrado da mãe aleita a boca que sorve o cheiro, o calor e o conhecimento da vida. A comida adquire o sabor da nossa existência, é também conhecimento espiritual.

A mesa ainda é o símbolo da confraternização universal, consagrada por Cristo na sua última ceia. Quem merece comer? Quem tiver fome! Na ceia, nem Judas foi privado do pão o qual o deu Jesus, e já molhado no vinho, gentilmente. Quando Paulo diz “quem não trabalha que não coma”, não coloca essa condição acima da caridade. Não se nega comida ao doente, desempregado, desalentado. Não se nega comida a ninguém, nem mesmo ao que se encontra aflito ou imobilizado por traumas psicológicos ou emocionais. Há também pessoas que ao perder alguém mui querido perdem a fome, nada conseguem ingerir. O nojo pela falta daquela presença.

Em companhia abre-se o apetite, sacramentam-se presenças visíveis e invisíveis. O relato bíblico diz que os cristãos comiam juntos com alegria e singeleza de coração. A palavra companheiro vem de comer juntos e do mesmo pão, mesma companhia. A refeição em grupo é memorável, à mesa as pessoas riem, mastigam, olham-se e se expõe na condição solidária, festiva, alegre, saciada.

Na Galileia de epidemias, de malária, lepra e cegueira purulentas, vigorava o desalento da fome sob pesados impostos de Roma. O Deus cristão aparece na pessoa de Jesus, médico, rabino e animador contra a desolação e morte, avivando comunidades.

O maná do deserto alimentou os israelitas famintos na fuga da servidão. Todavia, os ansiosos, guardavam-no em sacos e o maná se estragava. A natureza provê o alimento para cada dia, pois mesmo na geladeira estraga após sete, quinze ou trinta dias. Talvez, gordos como eu “assaltem a geladeira” querendo tirar uma memória esquecida de dentro. Há momentos que nos nutrem, como o manjar de Jesus ao recusar o alimento trazido pelos discípulos no poço de Jacó. Jesus exorciza o egoísmo, “o tudo para si”.

O tema da Campanha da Fraternidade de 2023 é: Dai-lhes vós mesmos de comer. Frase dita na perícope A multiplicação dos pães. É admirável que o milagre se dê com a partilha, não com dízimos, é ato concreto da vivência cristã de quaisquer ramos, a que reparte com o próximo e não se distancia do necessitado – “é melhor dar que receber” (Jesus, citado por Paulo).

Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, ensaísta, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

 

 

 

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