Armando Alexandre dos Santos
No dia 15 de março de 1990, o então jovem Fernando Collor de Mello assumiu a presidência da República e nomeou, para comandar a economia brasileira, a ministra Zélia Cardoso de Mello. No dia imediato à posse, promulgou o chamado Plano Collor, que deveria, teoricamente, ter acabado com a inflação galopante que assolava o País. Foram repentinamente “congeladas” (o que, na prática, equivalia quase a um confisco) todas as contas correntes e as de poupança dos brasileiros, ficando cada uma delas apenas com a quantia bem modesta de 50 mil cruzados novos disponíveis. Ao mesmo tempo, foi criado um novo padrão monetário, com a extinção dos “cruzados novos” e o reaparecimento do “cruzeiro”. Essas medidas abalaram profundamente o país, entrando em pânico os meios empresariais e financeiros. A reação das bolsas foi imediata e muita gente rica se viu, de repente, reduzida à condição de “classe média bem baixa”. Lembro de uma pessoa que havia vendido um apartamento na semana anterior e tinha recusado receber o pagamento em dólares, preferindo receber em dinheiro brasileiro para aplicar tudo em bancos, no chamado overnight. Perdeu tudo, ou quase tudo, da noite para o dia.
O fato foi muito chocante pela deslealdade de procedimento da nova equipe governamental. 3 ou 4 dias antes de Collor tomar posse, Zélia, que já estava indigitada para ministra e já conhecia sigilosamente o pacote econômico que seria lançado, foi numa entrevista pública questionada sobre se havia alguma possibilidade de ocorrer no Brasil uma forma de confisco de poupanças, como tinha havido anteriormente na Argentina. A futura ministra, para evitar que houvesse uma corrida aos bancos, mentiu deslavadamente e declarou solenemente: podem deixar seu dinheiro nas poupanças, porque eu mesma, se tivesse dinheiro, era lá que deixaria o meu…
Diante do mercado em pânico, era preciso acalmá-lo. Foi combinado, então, um almoço de empresários do Brasil inteiro com a Ministra Zélia. Cada um dos participantes devia pagar uma quantia muito elevada para ter o privilégio de comparecer ao seleto e exclusivíssimo repasto. Se não me falha a memória, era o equivalente a 15 mil cruzados novos, ou seja, quase um terço do que cada conta bancária ou caderneta de poupança pudera conservar.
Na hora em que estavam todos reunidos para iniciar o almoço, em meio à expectativa geral, foi anunciado que a ministra não poderia comparecer, porque estava com a agenda muito sobrecarregada, mas que um assessor qualificado dela a substituiria e daria todos os esclarecimentos pedidos pelos “almoçantes”.
Compreende-se a decepção e a revolta dos presentes… Muitos dos empresários, indignados, protestaram em altos brados e exigiram a imediata devolução dos cheques que tinham passado. Como eram muitos os “protestantes”, foi organizada uma fila enorme e cada um foi pegando de volta seu cheque e ia saindo… em jejum!
Precisamente no dia seguinte, foram lançadas no mercado brasileiro as novas notas de dinheiro, com o novo padrão monetário (o ressuscitado cruzeiro) em lugar do defunto cruzado novo. Nas novas notas, não mais eram impressas figuras de personagens da História do Brasil, mas nelas aparecia a imagem da chamada “Marianne”, a mulher que simboliza a república francesa e de modo geral as demais repúblicas do mundo.
Aconteceu então uma coisa muito engraçada: a mulher que figurava nas notas como “Marianne” tinha alguma semelhança fisionômica com a ministra Zélia. Obviamente, isso deu em piada, todos os leitores entendem bem… Começaram a dizer que, na véspera, Zélia não pudera ir ao almoço dos empresários porque precisara ficar posando para o desenhista da nota.
No dia seguinte, um jornal paulistano publicou uma charge engraçadíssima, com dois desenhos e, separando-os, duas palavrinhas apenas. As palavrinhas eram: “Enquanto isso…”. Essa locução adverbial de tempo, seguida de reticências, era perfeitamente incompreensível se desacompanhada dos quadrinhos, E sobretudo o era sem todo o contexto vivido pelo Brasil inteiro naquela situação.
No primeiro dos quadrinhos, aparecia uma fila enorme de senhores furiosos e solenes, vestidos com casaca, fumando charutos e com suas cartolas na mão com a abertura para cima, na posição clássica de quem pede e espera uma esmola. Só isso, nada mais… No quadrinho seguinte, depois do “Enquanto isso…”, uma cena completamente diferente: a ministra Zélia, estendida languidamente sobre um sofá, posava como modelo para um artista, o qual tinha diante de si uma tela com o desenho e os contornos da nova nota de um cruzeiro e, bem no centro, reproduzia com seu pincel a cara da ministra.
Na época, todo mundo entendeu e todo mundo deu boas risadas, porque era realmente original e engraçada a charge. Por quê? Porque todos conheciam o contexto. Alguns meses depois, o episódio já estava esquecido e aquelas imagens tão vivas e espirituosas pareceriam incompreensíveis e não teriam a menor graça. Era o conhecimento do contexto que tornava possível a compreensão da charge.
Aqui ficam estas recordações velhas de 30 anos, para conhecimento dos meus leitores – a maior parte dos quais nem tinha nascido ou estava na primeira infância quando esses fatos ocorreram.
Em tempo: Não foi essa a primeira vez que, no papel-moeda brasileiro, se notou semelhança fisionômica entre a mulher-símbolo da República e uma determinada mulher bem conhecida de todos. Este artigo já vai muito longo… mas se me lembrarem posso contar em outra ocasião.
Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.