Visões diversificadas sobre o Sete de Setembro
Armando Alexandre dos Santos
O 7 de Setembro de 1922 marcou, sem a menor dúvida, um virar de páginana trajetória da nação brasileira. Teoricamente, todo virar de página (seja na vida de um indivíduo, seja na vida de um povo) pode se dar de duas maneiras fundamentais: ou pela continuidade ou pela ruptura.
O processo de Independência do Brasil teve, é claro, elementos de ruptura em relação a Portugal, mas se deu sobretudo na linha da continuidade – na Fé, na Língua, na forma de governo, na Dinastia, na tradição unionista da Monarquia lusa. Nosso primeiro Imperador foi precisamente o herdeiro na coroa de Portugal. Até nesse ponto fundamental foi mantida a continuidade.
Para entendermos como se processou a Independência, é preciso considerar bem o contexto político e – se permitem o neologismo, psico-sócio-político em que se fez a Independência. Ela se deu dentro de um contexto histórico de extrema importância, na passagem da Idade Moderna para a Idade Contemporânea, assinalada pela Revolução Francesa e pelas múltiplas consequências que, em cadeia, essa Revolução trouxe para o mundo inteiro.Tão importante foi essa Revolução que uma expressiva corrente de historiadores de nosso tempo chega a negar que tenha existido uma Idade Moderna e que tenha existido um único Renascimento. Preferem falar numa sucessão de Renascimentos (o carolíngio, nos séculos VIII e IX, o do esplendor e apogeu da Idade Média, no século XIII, e depois o Renascimento propriamente dito, o humanista, a partir do século XIV) e preferem estender a Idade Média até à Revolução Francesa. É o que chamam de “Longa Idade Média”. Entendem que foi a Revolução Francesa, e não o Renascimento, que assinalou o fim da Idade Média e do do sistema feudal. Para essa posição propendem, entre outros, os franceses Jacques Le Goff e Alain Guerreau.
Situada numa posição ideológica bem diversa, minha amiga Profa. Alexandra Willhelmsen, da Universidade de Dallas, considera que a Revolução Francesa, ao implantar o laicismo de estado, significou para a Igreja Católica um prejuízo maior do que a eclosão do protestantismo no século XVI. Ela também, pois, numa ótica bem diversa da adotada por Le Goff e Guerreau, destaca a suma importância dessa Revolução.
Foi exatamente nessa fase profundamente marcada pela Revolução Francesa, que se deu nossa Independência, a qual étema de copiosa bibliografia, com visões muito diversificadas. Muito se escreveu no passado, muito se está escrevendo no presente, e por certo muito ainda se escreverá no futuro sobre nossa emancipação.
No tocante à bibliografia brasileira, cabe um comentário que gostaria de fazer desde logo, embora de passagem.Lembro de ter lido, na Internet, uma historieta de uma pessoa que, aos 7 anos, via o pai como um homem que sabia tudo, aos 12 começou a notar suas lacunas, aos 17 começou a achar o pai bem ignorante e, aos 25, o considerava uma nulidade total. Mas depois, à medida que foi amadurecendo e ganhando experiência, começou a redescobrir os méritos do pai. E, no final, já velho, concluiu que tinha razão aos 7 anos, ou seja, o pai era sábio mesmo…
Essa historieta me fez lembrar o tema da historiografia brasileira sobre o Sete de Setembro e sobre os 322 anos de nossa história em que estivemos unidos a Portugal.Em 1822, o Brasil se separou de Portugal e passou a conduzir seu próprio destino. Era um adolescente que chegava naquela fase crítica em que briga com os pais, diz uns desaforos e sai de casa, batendo a porta e decidido a andar com as próprias pernas, para mostrar ao “velho” que é melhor do que ele.Nos primeiros tempos, procura esquecer o passado, procura começar tudo da estaca zero; quando se lembra do passado, é para criticar a formação que recebeu. Quando dá algum passo em falso e cai, a culpa é sempre atribuída aos pais, que não o prepararam devidamente…Mas os anos e as décadas vão passando e, cada vez mais, queira ou não queira, sua lembrança se volta para a infância, para a fase de sua formação, e os pais vão sendo revalorizados. Algumas décadas depois, já maduro e experimentado, reconhece o papel dos pais e lhes faz justiça.
Isso, de certa forma, se passa com muitos países novos, antigas colônias emancipadas de suas metrópoles.Depois que o Brasil se separou de Portugal, a historiografia do período imperial tendeu a fixar em 1822 o “ano zero” da nova nação. O que vinha antes, ficava relegado a uma espécie de pré-história, e todos os erros e falhas do período imperial, todas as lacunas e carências, tudo era culpa do passado dito “colonial”.
Quase toda a historiografia brasileira do século XIX tendeu a ser extremamente crítica do passado luso. Portugal teria explorado o Brasil, teria roubado o ouro, teria impedido o seu progresso, foi uma pena que os holandeses não tivessem conquistado o Brasil etc. etc. Essa foi a linha ideológica prevalecente da chamada historiografia liberal do século XIX.Em vários países da América Espanhola, o mesmo caminho foi percorrido. A perspectiva do tempo, porém, permitiu mais objetividade. O historiador chileno Jayme de Eyzáguirre (1908-1968) se referiu, numa obra que li há muitos anos, a uma tendência geral de revisão do passado, no século XX, nos vários povos americanos (recordo que ele incluía o Brasil e mostrava estar bem a par das obras publicadas no Brasil).
De fato, entre nós houve essa tendência para reestudar o passado, em autores (historiadores, sociólogos e outros) de várias orientações ideológicas, num sentido crítico, sim, mas também num sentido de procurar considerar com olhar mais compreensivo os elementos constitutivos da nossa formação.Os primeiros 322 anos de nossa História, foram, na realidade, um longo e fecundo período de gestação, de crescimento e de amadurecimento, até o momento da emancipação. Voltaremos ao assunto no sábado que vem.
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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.