Uma Grécia  idealizada, mas irreal

 

Concluímos hoje a série de artigos sobre o livro “A vida cotidiana na Grécia no século de Péricles” de Robert Flacelière.

Os capítulos V e VI (p. 147-204) tratam dos trabalhos e ofícios, da toalete e do vestuário dos antigos gregos. São ambos densos e cheios de pormenores interessantes para o estudioso da velha Hélade, mas tomariam demasiado espaço para serem expostos e comentados num artigo destinado ao grande público, como este. Igualmente não comporta expor aqui o capítulo VII (p. 205-235),  sobre refeições, jogos e prazeres; basta dizer que nele se trata detidamente da alimentação das várias classes sociais, desde os requintados (para o gosto da época, naturalmente) menus dos symposia (banquetes), até o mais trivial nutrimento das camadas inferiores da sociedade. O cerimonial que cercava a alimentação é também descrito minuciosamente.

A respeito da vida religiosa e do teatro – assuntos de grande importância na Grécia, e muito relacionados entre si – estende-se o cap. VIII, que discorre sobre as cerimônias religiosas, o sacerdócio, os sacrifícios, os adivinhos, os oráculos, os presságios e métodos de adivinhação do futuro, os rituais propiciatórios e de cura, os grandes santuários, as peregrinações. No tocante ao teatro, seu papel (ou  função) de catarse é objeto de atenção do autor. (p. 236-276)

A justiça é o tema do cap. IX (p. 277-298). Uma diferença básica entre o sistema judiciário ateniense e os nossos sistemas modernos é que não havia propriamente uma representação oficial do interesse da coletividade. Em outras palavras, não havia o que no Brasil se designa como Ministério Público e nos países hispânicos como Fiscalía. Diante dos tribunais, em causas de interesse privado qualquer pessoa lesada podia fazer uma acusação e solicitar uma audiência, ou por si mesma, ou, caso se tratasse de um menor de idade, de uma mulher, de um meteco ou até mesmo de um escravo, por meio de um representante legal, que atuava à maneira de advogado e defensor dos interesses da pessoa lesada. Em causas de interesse público, porém, quando se tratava de um interesse coletivo em jogo, não havia um funcionário público para patrocinar a demanda, mas qualquer cidadão podia tomar a iniciativa de propô-la. (p. 280)

O sistema de tribunais atenienses era amplo e complexo, desde o mais alto e respeitado deles, o Areópago, até os menores, de vários níveis e âmbitos de jurisdição e competência, e chegando a tribunais populares (Héliée), aos quais competia julgar praticamente tudo que não fossem crimes ou causas de morte.

À guerra é consagrado o último capítulo (p. 299-329). Tratava-se de um assunto de extrema importância no mundo helênico em geral, e no ateniense em particular. É, aliás, sintomático o modo com que Flacelière abre esse capitulo: “Pensa-se geralmente hoje que os regimes democráticos são mais pacíficos que os ditatoriais. Não era bem assim na Antiguidade, no qual a democracia ateniense, pelo menos a do tempo de Péricles, revelou-se belicosa, conquistadora, imperialista.” (p. 299).

O autor, para tratar convenientemente dessa matéria, faz longas digressões de caráter histórico sobre guerras em que Atenas se envolveu, desde bem antes de Péricles até períodos muito posteriores a ele. A comparação com Esparta – o outro polo, podemos dizer assim, da Hélade antiga, perpétuo contraponto ao ateniense – é recorrente nesse capítulo. Uma exposição técnica detalhada sobre a composição dos exércitos, sua estruturação, os respectivos armamentos, as táticas que adotavam, é feita ao longo dele capítulo. Como em tudo o mais numa sociedade em que o elemento religioso estava profundamente imbricado com o civil, o cerimonial religioso que cercava a vida militar é também exposto. E, em se tratando de um povo eminentemente mareante, como o grego, o papel da marinha de guerra é também exposto em pormenores.

O livro conclui com uma visão de conjunto, na qual o autor procura explicar, aos leitores, o motivo pelo qual se estendeu tanto sobre aspectos menos brilhantes do mundo grego, afastando-se da visão idealizada de uma Grécia clássica modelo de perfeição sob todos os pontos de vista. É a esses leitores, porventura decepcionados com o realismo com o qual o livro tratou dos vários aspectos do que se poderia chamar, sem dúvida de modo anacrônico, de “greek way of life”, e ao fato de ter se estendido menos sobre as tão propaladas grandezas e sublimidades do gênio grego, que ele dedica esse fecho, que denomina “Régard d´ensemble” (visão de conjunto).

Para encerrar esta série de artigos, cabe apenas reproduzir algumas das frases do próprio Robert Flacelière: “O brilho da Hélade não ofuscou somente escritores que dela deram uma visão falsamente paradisíaca (…), mas fascinou também autênticos historiadores. (…) Leem-se com frequência apreciações pouco matizadas que mais parecem clichês: a Atenas de Péricles ofereceria para todos os tempos o modelo incomparável da perfeita democracia: a moral da Grécia antiga, a dos “heróis” de Plutarco e dos sábios estoicos, seria superior a qualquer outra (…)” (p. 333) “Quando se retraça a vida cotidiana em um determinado país e em um determinado momento, fica-se forçado a mostrar sobretudo o exterior das coisas, e seu exterior mais banal, precisamente aquele que é mais “cotidiano”. (p. 330) “Este livro, tal como ele é, pode servir de antídoto a certa literatura que, na França e no Exterior, desde o Renascimento apresenta aos leitores uma Grécia idealizada, imaginada, sonhada, mas irreal.”(p. 331)

 

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

Frase a destacar: Pensa-se geralmente hoje que os regimes democráticos são mais pacíficos que os ditatoriais. Não era bem assim na Antiguidade.

 

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