A trajetória intelectual de um grande helenista

 

Armando Alexandre dos Santos

 

Continuemos a apresentar o livro “A vida cotidiana na Grécia no século de Péricles”, de Robert Flacelière (Paris: Librairie Hachette, 1959, 375 p.), um dos títulos mais antigos e mais bem sucedidos da coleção “A vida cotidiana”, publicada a partir de 1938 pela editora Hachette. Falemos hoje do seu autor.

O parisiense Robert Flacelière, nascido em 1904 e falecido em 1982, aos 77 anos de idade, é considerado um dos grandes helenistas franceses do século passado. Sua formação universitária se deu na famosa École Normale, prestigiosa instituição universitária francesa cujas origens remontam a 1794 e que possui diversos cursos, divididos em duas grandes seções, a de Ciências e a de Letras. Como normalien da área das Letras, Flacelière se especializou na Antiguidade grega, juntamente com dois colegas de turma – Pierre Demargne (1903-2000) e Pierre Devambez(1902-1980) – que também seguiriam, com Flacelière, carreiras paralelas. Ao final do curso de normaliens, os três, considerados alunos brilhantes, foram convidados a prosseguir os estudos em Atenas, na École Française d´Athènes. Mais tarde, cada um deles desenvolveria uma carreira acadêmica própria, mas todos na área da Antiguidade grega, e todos os três concluiriam sua trajetória no ponto mais alto da intelectualidade francesa, como membros da Académie Française.

Durante os anos passados na Grécia, Flacelière se concentrou de início na epigrafia helênica — e, mais especificamente, na epigrafia délfica — tornando-se grande autoridade nesse campo. A epigrafia consiste no estudo das inscrições antigas, que foram gravadas sobre a pedra, ou a madeira, ou em metal com a intenção de transmitir informações para o futuro. Lápides mortuárias, estátuas com inscrições, medalhas, moedas, leis gravadas em locais públicos etc. – tudo isso pode ser analisado e estudado, fornecendo informações preciosas para os historiadores de determinado período ou de determinada cultura.

A especialidade de Flacelière era o estudo de inscrições na cidade de Delfos, onde se situava o famoso templo de Apolo, ao qual acorriam pessoas desejosas de conhecer seu futuro, o qual lhes era revelado pela Pitonisa, a sacerdotisa de Apolo, geralmente em versos enigmáticos que permitiam mais de uma interpretação. Sendo Delfos o maior centro religioso da Grécia Antiga, o estudo das numerosas inscrições ali preservadas, deixadas não só pelos moradores do local, como também por visitantes de todas as partes da Hélade, oferece abundante matéria para a compreensão da sociedade e da vida dos antigos gregos.

Na sua tese de doutorado, defendida em 1935 e intitulada “Os etólios em Delfos: contribuições para a História da Grécia Central no século III a.C.”, Flacelière estudouo período em que os etólios, depois de terem conquistado Delfos, estabeleceram uma coligação de cidades-estado que exerceu forte predomínio sobre toda a Grécia central.

Como professor universitário, lecionou Língua e Literatura grega em Lyon até 1948, quando se transferiu para a Sorbonne, em Paris, onde continuou a reger essas mesmas disciplinas. Em 1963 assumiu a direção da École Normale, na qual iniciara seu trajeto, ali se mantendo até 1971, e em 1967, aos 65 anos de idade, foi eleito para a Academia Francesa – que é a matriz de todas as Academias de Letras (e/ou de Ciências) de todo o mundo.

Na sua trajetória intelectual de helenista, Flacelière manteve o interesse pela epigrafia, mas abriu bem mais o leque de suas pesquisas, entrando no campo da literatura, da filosofia e da moral, traduzindo e editando obras gregas clássicas, como a Ilíada, que, curiosamente, quis traduzir em versos alexandrinos franceses, por considerar que essa forma poética tinha ritmo análogo ao do original grego. Pouco a pouco, estendeu seu interesse para a transição do Mundo Antigo para o Cristianismo, e como personagem dessa transição focalizou de modo especial a figura de Plutarco, cujas obras — as Vidas Paralelase as Moralia — traduziu e editou em numerosos volumes. Na sua ótica, Plutarco, mesmo sendo pagão, pela sua moral, pela sua filosofia e até mesmo pelas suas ideias religiosas, de certa forma preparava os espíritos para a aceitação do Cristianismo. Avançando seu interesse pelos primeiros séculos da Era Cristã, traduziu também parte da obra de São João Crisóstomo.

A par da produção acadêmica de alto nível, publicou obras de divulgação voltadas ao grande público sobre a Grécia, algumas das quais com tiragens muito elevadas. A primeira dessas obras de divulgação, que data de 1959, é precisamente a “Vida cotidiana” que estamos estudando. Seguiram-se, nos primeiros anos da década seguinte, livros sobre amor e sexualidade (L´Amouren Grèce), sobre adivinhação e magia (Devins et oraclesgrecs), sobre literatura (Histoire Littéraire de la Grèce) e sobre o pensamento de Plutarco (Sagesse de Plutarque).

Depois de retirado na École Normale, ainda trabalhou alguns anos como diretor da Fundação Thiers, uma antiga instituição que subvenciona com bolsas de estudo jovens pesquisadores que se destacam em várias áreas do conhecimento. Em 1980, ao completar 75 anos, aposentou-se definitivamente e faleceu dois anos depois.

 

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba

 

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