Incorreção política no século XIX

Armando Alexandre dos Santos

 

Nas últimas décadas, muita coisa mudou para melhor, mas infelizmente também muita coisa mudou para pior no ensino brasileiro. Sei que posso estar sendo politicamente incorreto, mas ainda penso que toda educação verdadeira é, por força da natureza, elitista.  Todo progresso no saber, em qualquer área, é sempre um desafio para os melhores, exatamente como é no esporte e é também na vida em geral.

Desde a velha Paideia grega, sempre se entendeu assim. Foi só a partir da famigerada Lei de Diretrizes e Bases, de fins da década de 60, já em regime militar, mas na realidade realizando plano já existente desde o período Goulart, que se pretendeu “democratizar” o ensino. Entretanto, em vez de se expandir e tornar mais acessível o excelente ensino público que tínhamos, preferiu-se fazer o mais fácil, ou seja, se nivelou por baixo. No altar da igualdade se sacrificaram os melhores, e o resultado é que os menos bons também foram prejudicados, por não poderem mais ser puxados para cima pelos melhores.

Meu saudoso amigo Paulo Bomfim tinha toda a razão quando ponderava que, no mundo inteiro, elite é coisa boa, só no Brasil é que virou palavrão.

Sou velho, sou muito velho. Tenho a mesma idade que o amigo “Capiau” que, apesar de se dizer “velho e cansado”, ainda nos brinda diariamente, na primeira página deste jornal, com ágeis e argutas observações sobre a política piracicabana. Somos ambos remanescentes dos tempos pré-históricos do velho Curso Ginasial, ao qual se tinha acesso pelos temidos “Exames de Admissão”, que prestávamos aos 10 ou 11 anos de idade, obstáculo intransponível para muitos alunos que não conseguiam superá-lo.

Ainda sou do tempo em que, no Ginásio, os alunos eram chamados de Senhor pelos professores, para mostrar que não éramos mais meninos e já tínhamos responsabilidades de adultos.

Ainda sou do tempo em que éramos obrigados a fazer uma redação diária e a ler seriamente pelo menos um livro por mês. As redações eram diárias, realmente, e uma vez por semana um dos alunos, designado pelo professor sem aviso prévio, escrevia no quadro-negro toda a redação que tinha feito naquele dia, e o professor a corrigia publicamente. Eram correções severíssimas. O professor, inicialmente, lia tudo em voz alta, para formar a visão de conjunto, e já ia corrigindo os erros ortográficos.

Em seguida, lia tudo uma segunda vez, corrigindo os erros sintáticos, a concordância gramatical, as formas verbais, mexendo na estrutura das frases, dos períodos e dos parágrafos.

Só no fim, depois de mexida e remexida a redação do pobre aluno, o professor fazia uma última leitura, analisando o pensamento, o conteúdo, as ideias expendidas pelo redatorzinho…

As críticas eram severas e bem humoradas, muitas vezes expondo a ridículo o autor da redação. Nem se pensava em bullying, na época, e ninguém ficava traumatizado pelas correções e zombarias. Sem dúvida, era algo terrível para o examinado, e muito divertido para os assistentes, que acompanhavam tudo às gargalhadas, mas extraordinariamente formativo para todos. Embora reconheça que esse método não pode mais ser aplicado em nossos dias, para mim foi ótimo. Saíamos do Ginásio, com 14 para 15 anos de idade, todos sabendo escrever com lógica e correção.

Quanto à leitura, éramos obrigados a ler um livro por mês, sendo preciso anotar num caderno todas as palavras que desconhecíamos, procurando-as no dicionário e aprendendo-as. Era matéria de prova mensal saber todas as palavras do livro que tinha sido lido no mês anterior. Muito do vocabulário que aprendi data dessa época, e seria capaz de dizer onde foi que aprendi.

Alguns exemplos de insultos ou palavras depreciativas que aprendi com Joaquim Manuel de Macedo: melcatrefe, truão, bangalafumengas, peralvilho e alcoviteira. Com Euclides da Cunha, aprendi, entre muitas outras, três palavras muito afins: adusto, ressicado e canícula.

É claro que os tempos mudaram e que os professores, hoje, precisam proceder de modo diferente. No nosso tempo, não nos incomodava sermos ridicularizados pelos barbarismos cometidos, diante de toda a classe. Hoje, um professor que agisse assim seria preso e um aluno desse professor seria imediatamente levado para tratamento psicológico para sanar traumas. Na escola antiga, um aluno não se considerava ofendido quando chamado de burro por um professor; no meu tempo, isso era comum. Centenas de vezes fui assim classificado em salas de aula, porque detestava números e cálculos.

Encerro estas recordações do meu tempo com uma recordação bem mais antiga, do século XIX, lida em livro de um memorialista da velha Faculdade de Direito do Largo de S. Francisco (já não recordo se no Almeida Nogueira, se no Spencer Vampré). Certo dia, um “lente” da Faculdade estava dando a sua aula de rotina, enquanto caminhava pela sala. A certa altura, aproximou-se da janela e, para espanto dos estudantes e do bedel, se pôs a gritar: “Cuidado! Cuidado! De repente ele entra! Cuidado!”

Os alunos, assustados, correram à janela para ver o que estava acontecendo. E somente viram, no velho largo provinciano ainda não pavimentado, um burrico que placidamente saboreava um matinho que havia crescido junto à faculdade.

O professor, então, acrescentou: “De repente ele resolve entrar na Faculdade e, daqui a cinco anos, temos mais um burro doutor…”
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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

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