Alemanha, Itália e França

Já é tempo de concluirmos esta longa série de artigos, nos quais estudamos os processos de formação dos grandes estados europeus modernos.

Não trataremos a fundo dos casos da Alemanha e da Itália, porque foram tardios em relação aos anteriormente estudados. Por uma coincidência singular, o mesmo ano de 1870 foi decisivo para a constituição do Reino unificado da Itália e do Império Germânico, matriz da moderna Alemanha.

Até então, tanto a Península itálica como o mundo germânico eram constituídos por grande número de soberanias locais, e de feudos autônomos e semi-soberanos. Foi Bismarck, após a vitória de 1870 sobre Napoleão III, imperador dos franceses, que se sentiu afinal em condições para erigir a Alemanha à condição de Império definidamente separado do Império Austríaco – que por sua vez era o herdeiro do antigo Sacro Império Romano-Alemão, instituído ainda no Medievo. O Império de Bismarck, instituído em janeiro de 1871 na pessoa do rei da Prússia Guilherme I, soçobraria com Guilherme II em 1918, em consequência da derrota alemã na Primeira Guerra Mundial. Esse foi o II Reich. Quanto ao III Reich, que nos planos mirabolantes de Hitler deveria durar mil anos, foi ainda mais breve do que o II. E deixou recordações ainda mais trágicas e sombrias.

Na Itália, a unificação se deu após a invasão dos Estados Pontifícios pelas tropas garibaldinas a soldo de Vittorio Emanuele, até então rei do Piemonte, apoiadas pela recém-proclamada III República francesa. Os Papas, desde então, declararam-se prisioneiros no Vaticano, assim permanecendo até 1929, quando, por força do acordo de Latrão, o Vaticano reconheceu o Reino da Itália e este, por sua vez, reconheceu a soberania plena do Estado da Cidade do Vaticano, ao qual pagou um indenização vultosa, mas mesmo assim apenas simbólica, pelos territórios e bens pontifícios que havia expoliado seis décadas antes.

Resta tratar do caso francês, que por suas peculiaridades merece uma atenção especial. A constituição do estado centralizado francês seguiu caminho diverso daquele seguido em Portugal, na Espanha ou na Inglaterra. Na França, a realeza se afirmou num prolongado conflito com os restos de feudalismo. No Medievo, durante séculos os reis foram apenas senhores feudais de mais prestígio (advindo em larga medida da aura que lhe conferia a sagração litúrgica e a ancestralidade que se perdia na noite dos tempos), se bem que nem sempre de maior poder. Pouco a pouco, foram reunindo poder efetivo a prestígio, em reinados muitas vezes conflituosos. O rei era o maior dos feudais e gradualmente, à medida que foi enfeixando mais poderes, e à medida que, por sua vez, o estado nacional se foi firmando, surgiu a identificação do Rei com o Estado.

Hoje se contesta que Luís XIV tenha afirmado a célebre frase a ele atribuída (“L’État c’est moi”). Mas o fato é que a identificação estava feita. Com a construção do Palácio de Versalhes, no século XVII, e a atração que a nova corte exerceu sobre a grande nobreza, esta se afastou de seus locais de origem, deixou de ser a protetora nata de seus antigos vassalos e passou a ser, apenas, a cobradora de impostos, a classe ociosa que vivia no fausto e nada mais fazia para justificar seus privilégios. Na França, diferentemente da Inglaterra, os nobres não podiam comerciar ou se dedicar à indústria (com raras exceções, como os “gentils-hommes verriers”, os vidraceiros, profissão considerada nobilitante), e suas terras se exauriam, entregues a administradores pouco eficientes, não controlados devidamente pelos senhores, que viviam longe, em Versalhes, gravitando em torno do Rei. O resultado é que a penúria foi tomando conta de largas faixas da nobreza. As últimas reservas de monopólio da nobreza eram as carreiras da administração pública, da diplomacia, e da oficialidade das forças armadas. As três foram retiradas pela Revolução Francesa. Enquanto isso, a burguesia crescia e se impunha. Por isso é que se pode afirmar que ocorreu, sim, um conflito de classes na França, mas não entre nobres e plebeus, como entendem autores marxistas, mas entre nobres antigos, remanescentes do velho feudalismo medieval, e entre a nova burguesia, que ambicionava fruir os privilégios da nobreza, mas não estava disposta a sacrificar-se, em prol do bem comum e das camadas menos favorecidas da população, como a velha nobreza o fazia.

O resultado foi a Revolução Francesa. Foi como designou um autor francês, “o rio de sangue que dividiu para todo o sempre a França em duas”.

 

Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História

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