Alê Bragion
Há conversas que não conseguimos deixar de ter – mesmo quando não queremos, mesmo quando tentamos escapar pelas sombras. Puxam-nos pelo braço os porta-retratos sobre a arca da sala – sérios, simples e silenciosos – ou saem à nossa procura até saberem de nós, quase à força, o que nós mesmos não queremos saber ao certo. Pelos cotovelos, nos sentam em largas poltronas, acolhedoras que macias, e nos inquirem, nos intimam, nos interrogam em imagético corte horizontal não-vocabular. Expostos, debulhamos nosso baú construído de lembranças e imaginações, de bem-quereres e razões que sustentam atos, erros, desejos e omissões. Solenes que circunspectos, aguamos olhos ante as arguições dos retratos – e sucumbimos, quase, em rotas de demoras emocionais.
Pedem-nos a nossa palavra também os pratos nas paredes – caminhos constantes de viagens e peregrinações temporais. Falam eles um idioma branco de louça que – por mais incrível que possa parecer – aprendemos a reconhecer vocábulo a vocábulo. Sabem esses pratos, por assim ser, do frio das salas em noites de apreensão e notícias más. Sabem também do calor das alegrias, das festas regadas a conversas, a risos e a esbarrões dados quando, num sem-fim de vezes, quase os derrubávamos e os destruíamos. Sabem eles da solidão diurna do sol na cortina – dos os ciclos no carrilhão, volta a volta. Sabem, os pratos na parede, das mais secretas confissões, das mais misteriosas juras, das mais sigilosas combinações. Do alto de sua lacunar presença empratada, observam o vai e vem do existir que sempre volta, ponteiro a ponteiro, para um novo e triste recomeço.
Lançam-nos perguntas à queima-roupa também os copos, os talheres, a velha geladeira que quase já não gela, o forno torto de tantos assados domingueiros, as cadeiras amolecidas pelo peso dos acontecidos que sobre elas (e sobre todos) se assentam no desenrolar vivido. O velho guardanapo estendido sobre o fogão enxuga as histórias e as lágrimas. Assobia de tristeza e saudade a chaleira aquecida pelas manhãs outonais e de inverno morno, relembrando o tempo quando as crianças eram acordadas logo cedinho para se preparem para a escola (e a casa corria pré-aquecida por um vapor melódico, pelo ruidoso arrulhar de sacos de pão feito pombas, pelo tiritar de chaves de cristais, por motores de carros cheios de pressa e de horas perdidas). Abordam-nos sobre as estações de outrora também as idas à cozinha, a nos acusarem – sem maiores preocupações de consciência, direito ou justiça – num apontar de dedos que sepulta em definitivo o que não é mais.
Pelas janelas do existir, enxequetada de grades, ouço ainda vindo no ar o latido dos cães que se foram. A voz grossa deles correndo pelo quintal, o arrastar de vasilhas, os passos-pegadas em patas patinhadas no ladrilho sereno da área que antecede a porta da cozinha. O inspirar com força bruta entre as frestas do debaixo da casa. O choro em gemido desejando entrada. A alegria infantil a erguer do chão quilos e quilos caninos, felizes apenas por ganharem um pedaço de pão. Ouço, sim, e ainda, os graves caninos a babarem sua presença viva, dócil, angelical e sentida. Ouço por sobre os muros os cães vizinhos, a responderem matutinas exclamações uivantes que sonoras e lamentosas. E perguntam-me todos eles, hoje, o que fiz eu do tempo que tinham. E latem-me interrogativos porquês. E eu, sem latido-explicação, não respondo a nada.
Há conversas que não conseguimos deixar de ter. E, dentre elas, as mais profundas e exaustivas talvez sejam as que derrubamos dos livros das estantes ou dos discos das velhas vitrolas a volatizarem luzes. Nos discos, há voltas em faixas às quais achamos que para elas nunca mais voltaremos outra vez. Mas, vez por outra, lá estamos nós. Voltados ao que amamos, a girar cantantes numa conversa infinda – às vezes triste, às vezes doce, mas sempre linda. Já as estantes, essas são sempre perigosas em seu palavrear letrado e cheio. Atiram-nos versos na cara, ferem-nos com prosas ácidas, acuam-nos com parágrafos fatais. Querem tudo de nós, a qualquer custo. Contam-nos como o existir é dinâmico e diferente quando o temos nas mãos. Depois, cansados de nós, atiram-nos como pedras na realidade campestre do jardim do existir – cru e desfeito de graças – sem ao menos sermos Caeiros.
Há conversas que não devíamos ter, nunca. Diante delas, sempre, muito cuidado. Porque nesses casos, conversar é mais, muito mais do que estar doente dos olhos.
Este cronista entra em férias e volta, se assim o editor-chefe permitir, depois do carnaval.
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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017