Armando Alexandre dos Santos
Depois dos três artigos anteriores, indispensáveis para contextualizar e introduzir o livro “Vida Cotidiana nos tempos de Homero”, de ÉmileMireaux, chegamos, afinal, ao conteúdo da obra.
O primeiro capítulo é destinado a fixar bem o “Cadre”, isto é, os contornos do que o autor chama “o universo homérico”. Mostra que é um universo muito reduzido, muito delimitado no tempo e no espaço e também restrito na sua possibilidade de evolução.
Que significa essa “restrição na possibilidade de evolução”? Mireaux esclarece, logo de início, que existe uma noção fundamental, sem a qual não se entende o mundo grego. É a noção de destino, um destino que ordena e conserva o mundo e que rege não apenas o homem e a natureza, mas os próprios deuses. O autor se estende longamente, no primeiro capítulo, na exposição desse conceito de destino, mostrando que ele preside a tudo, deixando, porém, uma discreta margem de liberdade e de iniciativa aos deuses e aos próprios homens.
O segundo capítulo apresenta aos leitores, minuciosamente, a residência senhorial. Seu título é “Le manoirseigneurial”. Descreve não apenas as várias partes dessa residência, mas estende-se sobre os elementos do mobiliário e da decoração.
O terceiro é sobre a vida senhorial, destacando sua simplicidade, sua rusticidade, bem como a quase total ausência daquilo que hoje consideramos indispensável conforto. Fala da influência do clima, nas várias estações do ano, e sobre como a vida se adapta a esse ciclo. Fala dos cuidados corporais, das vestimentas e dos adornos, masculinos e femininos. Fala ainda, extensamente, dos “génos”, grupos sociais equivalentes às“gentes” romanas, constituídos por grupos de famílias que mantêm a noção de que descendem todas por linha masculina de um mesmo antepassado comum. Relaciona a pertença a um “génos” com a classe social nobre. Mostra como a autoridade do chefe de “génos” tem algo de realeza, mas engloba elementos econômicos, políticos, sacerdotais e jurídicos (inclusive judiciais). Indica que a primogenitura é importante elemento indispensável, mas não suficiente, para determinar a chefia da “génos”. Considera a riqueza (territorial e em rebanhos) dos genetas, fala de sua pequena corte, composta por parentes, criados, amigos, companheiros de armas etc. e dos divertimentos da classe nobre, em especial a caça. Estende-se sobre o significado dos cães, seres muito importantes no mundo homérico. Discorre sobre as viagens dos nobres e sobre os deveres da hospitalidade, sobre a alimentação rotineira e as festividades. Fala da psicologia da vida senhorial, rude na aparência, mas comportando, por vezes, refinadas gentilezas e delicadas expressões de sentimentos de fidelidade e amizade.
O capítulo IV trata das profissões religiosas e intelectuais, falando do sacerdócio, dos sacrifícios, dos adivinhos, dos oráculos, dos médicos e exorcistas. Sobre os médicos (os Asclepíades, que se diziam descendentes de Asclépio), mostra seu caráter hereditário, com segredos passados de pai a filho através das gerações. Também osaedos, os cantores, os poetas e os músicos são apresentados nesse capítulo.
O capítulo V é dedicado aos camponeses e soldados. Explica bem a noção de “cleros”, ou seja, um lote de terras atribuído a uma unidade familiar. É uma noção que variava nas várias regiões da Grécia e que também foi sendo modificada ao longo do tempo. Fala das regras da conservação, da transmissão e da exploração do “cleros”. Fala também da vida militar, da formação, do armamento e das vestimentas dos militares.
O capítulo VI é sobre o povo miúdo e os trabalhos no campo, dos servidores, dos camponeses, dos pescadores, nas várias fases do ano e nas várias regiões da Grécia.
O capítulo VII refere-se aos demiurgos e artesãos citadinos. Mostra bem a importância econômica e a função social dessas classes, que pouco a pouco ascenderam economicamente e atingiram um nível que tem certa analogia com a indústria burguesa moderna. Fala da “aristocracia comerciante e industrial” e de seus conflitos com a velha aristocracia de sangue e de posses territoriais, pela disputa do poder político. Qualquer semelhança com as lutas sociais da velha Roma e, bem mais recentemente, com aascensão da burguesia europeia ao poder político, desde o declinar do Medievo até a Revolução Francesa, não é mera coincidência.
O capítulo VIII, que trata das vinganças de sangue e lutas entre famílias, das reconciliações e acordos familiares, do ordálio e do suicídio, da natureza e dos limites da justiça privada, constitui, de certo pondo de vista, um dos mais interessantes do livro.
O capítulo IX é consagrado à vida feminina. A mulher no lar, na vida e no governo da família, o noivado, o casamento e os nascimentos, a vida religiosa, os mistérios femininos e a prostituição, tudo isso é tratado nesse capítulo.
OX contempla as festas populares, os funerais e os jogos, enquanto o XI trata dos excluídos da sociedade. Tem por título “O mundo dos errantes e dos desenrraizados”-marinheiros, viajantes, mendigos, exilados e mercenários.
O último capítulo, o XII, apresenta, à guisa de conclusão, uma visão de conjunto.
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Concluo esta série de artigos sobre o livro de Mireaux acrescentando que ele foi altamente elogiado por grandes nomes da cultura e da historiografia europeia – inclusive por LucienFebvre, o prestigiado cofundador da ÉcoledesAnnales. Mas foi também objeto de algumas críticas, a meu ver injustas. Não podia deixar de ser. Afinal, não é possível contentar a toda a gente…
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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.