Armando Alexandre dos Santos
Prosseguindo o tema que iniciamos a tratar nas duas últimas semanas do já distante e nada saudoso 2021, falemos agora do livro “La viequotidienneautempsd´Homère” (A vida cotidiana nos tempos de Homero – Paris: Hachette, 1954), de Émile Mireaux.
O autor tem uma biografia bastante diversa da que têm normalmente os schollars. Sua formação teve muito de autodidatismo e fugiu sensivelmente ao modelo de “intelectual especialista” consolidado ao longo do século XX. Foi, mais bem, um “generalista”, que atuou e produziu em campos diversificados do conhecimento.
Nascido em 1885 e falecido em 1969, Mireaux foi jornalista e intelectual muito respeitado (basta dizer que chegou a ser membro do seletíssimo Institut de France) , além de ter atuado na política francesa e ter também exercido, durante a Primeira Guerra Mundial, atividade militar. Sua formação acadêmica foi em História e Geografia, pela Escola Normal Superior, mas foi no campo da Economia que mais se destacou, escrevendo durante muitos anos na imprensa especializada nessa área e publicando trabalhos de fôlego sobre economia e finanças, matérias em que se tornou autoridade. Paralelamente, exerceu cargos públicos eletivos, chegando a senador e, quando a França caiu em 1940 diante da ofensiva alemã, aceitou o cargo de ministro da Instrução Pública do governo de Vichy. Mas muito rapidamente demitiu-se, por não concordar com a linha colaboracionista e pró-nazista do governo chefiado por Pierre Laval, e passou a apoiar a resistência antinazista. Mais tarde, ao final da Guerra, foi julgado e declarado inocente de qualquer acusação de colaboracionismo com o nazismo. Paralelamente à atuação jornalística e política, estudou em profundidade dois temas de natureza e épocas muito diversas, sobre eles publicando obras de referência: os antigos poemas homéricos e a medieval Chanson de Roland. Sobre o primeiro desses temas, publicou Lespoèmeshomériquesetl´histoiregrecque(Paris: Albin Michel, 2 vols., 1948-1949, 379 e 436 p.), assim como o livro que aqui se está a resenhar; e sobre o segundo, deu a lume La Chanson de Roland et l´Histoire de France (Paris: Albin Michel, 1943, 300 p.).
Por essa sumária rememoração biográfica, podemos desde logo notar a caráter pluridisciplinar de ÉmileMireaux como intelectual. Metodologicamente, ele se baseou, na descrição da sociedade grega, sobretudo nos dois poemas homéricos, mas, como ressalta na introdução, teve bem presente que Homero estava escrevendo (ou mais corretamente, estava compondo versos, já que era iletrado) sobre fatos muito anteriores, de modo que a descrição da realidade social e da vida cotidiana corresponde mais ao seu tempo do que à realidade da Guerra de Tróia e do peregrinar de Ulisses pelas vastidões oceânicas.
Na Introdução, Mireaux começa por fixar bem, no tempo, o período homérico, cuja sociedade tentará descrever. Em seguida ele pergunta: ─ “De que materiais dispomos para tentar reconstituir a fisionomia dessa época?” E responde:
“Entre os textos literários, há que colocar em primeiro lugar os próprios poemas homéricos. São documentos em extremo preciosos, mesmo porque são insubstituíveis, já que desapareceram, na sua quase totalidade, outros textos contemporâneos épicos ou líricos, que com certeza existiram e foram numerosos. (…) Quase no mesmo plano que os poemas homéricos, devemos colocar, entre nossas fontes de informação, as obras de Hesíodo. Nós situamos a atividade literária do poeta de Ascra na segunda metade do século VII, bem no fim da chamada idade homérica. As precisões que ele nos fornece em `Os Trabalhos e os Dias´ sobre a vida rural também apresentam grande valor documental, pois, se há um domínio no qual as modificações são lentas e insensíveis, esse é exatamente o domínio da sociedade camponesa. Quanto aos numerosos poetas líricos que escreveram desde o início até meados do século VII, eles são, infelizmente, inutilizáveis para nosso propósito. (…) Para ilustrar os textos literários, dispomos felizmente de uma documentação arqueológica relativamente abundante. Trata-se, essencialmente, daquela que nos fornecem as buscas em cemitérios, sendo as tumbas o melhor conservatório dos objetos cotidianos que era costume sepultar com os mortos. (…) A essas fontes diretas, há, por fim, que acrescentar as indiretas, que não são sempre as menos preciosas… São textos e instituições posteriores que dão testemunho e nos informam incidentalmente sobre a vida dos primeiros séculos da história grega. Ademais dos textos históricos propriamente ditos de Heródoto e de Plutarco, e de indicações esparsas colhidas eruditamente em diversos escritos políticos, filosóficos ou simplesmente literários, é preciso mencionar especialmente os textos jurídicos. As mais antigas legislações, na medida que nos são conhecidas pelas citações e inscrições, as de Dracon e de Sólon, as leis de Gortino, sem esquecer as leis hipotéticas de um Licurgo, contêm disposições que nos informam acerca de períodos mais recuados, seja porque se limitem a codificar velhos costumes, seja porque se apliquem a modificá-los ou restabelecê-los. (…) O estudo crítico das instituições e dos costumes que se perpetuaram longamente nas cidades mais conservadoras, notadamente em Esparta, pode, por fim, fazer grande luz sobre as antigas estruturas familiares e sociais do mundo grego. As análises efetuadas nessa área por Henri Jeanmaire, à luz da etnografia comparada, revelaram-se particularmente produtivas. É verdade que sempre subsistem lacunas, como num vaso quebrado que se tenta reconstituir a partir de seus cacos. Mas é lícito, com os elementos disponíveis, tentarmos fazer reviver aquele longínquo passado pelo qual sentimos, movidos pelo prestígio da poesia, tão invencível atração.”
Quis traduzir esse longo trecho extraído da Introdução porque, do ponto de vista metodológico, ele se reveste de grande importância, como exemplo prático e concreto de uma reconstituição do passado, feita a partir de elementos de ordens e tipos muito diversos. Um trabalho inteligente de combinação e remontagem permite chegar a resultados muito consideráveis. Desde logo ressalte-se que esse é um tipo de abordagem historiográfica tipicamente inspirado na Escola dos Annales. Seria impensável na anterior escola metódica, de inspiração positivista, contra a qual se levantaram Marc Bloch e LucienFebvre, quando fundaram em 1929 a revista Annales d’histoireéconomiqueetsociale.
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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.