Alê Bragion
Quintana nos disse que a esperança é uma louca que, ao fim dos ciclos dos anos, se atira de novo na calçada da vida, com olhos e corpo de criança: “Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano/Vive uma louca chamada Esperança/E ela pensa que quando todas as sirenas/Todas as buzinas/Todos os reco-recos tocarem/Atira-se/E/— ó delicioso vôo!/Ela será encontrada miraculosamente/incólume na calçada,/Outra vez criança…/E em torno dela indagará o povo:/— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?/ E ela lhes dirá/(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)/Ela lhes dirá bem/devagarinho, para que não esqueçam:/— O meu nome é ES-PE-RAN ÇA…”
Luther King, o grande líder negro norte-americano – exemplo de força, fé e entrega à luta pelos direitos dos negros e de todos os que sentem na pele a necessidade de fazerem valer os direitos humanos em si – disse certa vez, em discurso histórico, que ele tinha um sonho: “Eu tenho um sonho, que meus quatro pequenos filhos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter.” Seu discurso, pronunciado em inglês, ganhou o reforço da sonoridade de seu idioma materno e a tonicidade aguda de suas palavras, sendo que o seu “I have a dream” parece ainda ecoar por toda a América do Norte – seguindo dela para todo o planeta. Sim. “I have a dream” – ouvimos ainda, ribombado pelos ares, na voz imortal no Nobel da Paz assassinado há 50 anos.
Nelson Mandela, a quem também se dispensam apresentações, disse que a esperança e os sonhos lhe eram vitais para seguir acreditando que todos – independentemente da cor da pele, do sexo, das ideologias e tudo o mais –, podem viver em harmonia e como irmãos: “Sonho com o dia em que todos levantar-se-ão e compreenderão que foram feitos para viverem como irmãos.” Premiado com o Nobel da Paz, Mandela – que foi condenado e preso por um tribunal de justiça! – encerrou assim a sua última fala em seu julgamento final: “Durante a minha vida eu me dediquei ao sofrimento do povo africano. Eu lutei contra a dominação branca, e lutei contra a dominação negra. Eu apreciei o ideal de uma sociedade democrática e livre em que todas as pessoas vivem em harmonia com oportunidades iguais. É um ideal pelo qual eu espero viver e atingir. Mas se necessário, é um ideal pelo qual eu estou preparado para morrer”. Mandela passou 27 anos preso. Após ser solto, tornou-se presidente da África do Sul – eleito na primeira eleição multirracial do país.
De sonhos e esperanças – daquela louca esperança da qual nos fala Quintana – viveram assim os principais líderes da humanidade –, como Luther King, Mandela, Gandhi e tantos outros que, mesmo perseguidos por modernos tribunais judiciários do Santo Ofício, não se renderam às forças que intentavam lhes enclausurar as ideias e o espírito. Mesmo aprisionados ou ameaçados de morte (ou ainda que cruelmente assassinados), souberam nos ensinar com o exemplo de suas vidas que os sonhos e a esperança não podem ser presos nem nunca morrem. E que não restem dúvidas, porém, de que não estamos aqui – ao nos inspirarmos a viver de sonhos e esperanças como esses líderes aprisionados nos ensinaram e ensinam –, que intentamos santificá-los ou transformá-los em mártires imaculados. Nada disso. Afinal, ao falharem em muitas de suas ações é que eles se tornaram ainda mais humanos – e ao se tornarem ainda mais humanos é que eles se materializaram como líderes ainda mais verdadeiros, mais reais, capazes de sonhar e dê nos porem a sonhar, capazes de ter esperanças e de nos tornarem esperançosos. Além disso, e como até a fé católica reconhece, sabemos que mesmo “o justo peca sete vezes por dia” (Pv. 24, 16), sendo que “não há homem que não peque” (Ecle 7, 21).
Estar ao lado de quem crê, espera e luta pelo advento de um mundo melhor – quer outra esperança mais louca do que esse, Quintana? – é também uma forma de marcarmos, hoje, cronicamente, o nosso lado no painel da história. Ao reverenciarmos aqueles que deram e dão a vida pelos mais fracos, pelos menos favorecidos, nos colocamos também na dialética histórica ao lado daqueles que sofrem e sonham – daqueles que morrem sem abandonar, todavia, sua causa maior. E reconhecê-los é fácil. Justos ou injustos, muito mais humanos do que santos, terminam sempre tais líderes nos braços do povo – e na parte respeitável da História; eclipsando em definitivo os seus algozes e o mal que deles emana. Em tempos de sonhos e esperanças, é ao lado desses líderes imensos que esta crônica e este cronista quer estar – sonhando, sempre! Feliz 2022.
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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017