Ode aos negacionistas

Alê Bragion

 

Negue, meu filho! Negue! – como diz a canção. Negue, que negar é a arte dos brutos, é a alma dos corruptos sempre em ação. Negue! Diga que não ouvia Waldick Soriano cantar “eu não sou cachorro, não.” Negue que usava sunga de bolinhas roxas quando ia à praia em Santos – e que pulava suas ondinhas geladas segurando uma prancha de isopor numa das mãos. Negue! Negue, por favor! Negue com horror seus discos baratos de um ieieiê ordinário que chinfrim. Negue, sim. Negue para mim suas costeletas ridículas caídas das orelhas até quase o começo do pescoço. Negue que ficou sem poupança quando o filho dum cão em quem você votou na sua primeira eleição pós-ditaburra lhe meteu a mão nas contas e lhe deixou com cinquentão. Negue, meu irmão. Negue, que Deus está vendo – e o Diabo então… nem lhe digo, não.

Negue seu racismo explícito em rodas de branquitude externado em piadas odiosas. Negue que depois, em sociedade aberta, você esconde sua verve humorística preconceituosa. Negue suas idas às “casas de famílias” das quebradas (eita vermelho em forma de luz que você gosta – esse sim! – mas escondido). Negue seu tremor interno – “que inferno, também…” – ao ter de sustentar ante todos ser um homem de bem. Negue que você ama o pobre bem longe – longe, bem longe. Negue que ir à missa, ao culto, à sessão ao domingos lhe põe na consciência uma sensação tão boa que lhe aplaca o mal que lhe é sua razão. Tão bom erguer as mãos ao alto no louvor a um deus pré-formatado, a um deus pré-moldado que lhe perdoa tudo o que você é e lhe garante seguir firme na sua fé de negador abnegado, inveterado. Negue, José! Siga negando! – porque o seu “e agora?” é sempre e quando.

Negue a ciência. Negue. Na sua demência negacionista, negar a ciência é um grande marco até para você. Negue. Negue a ciência, os livros, a escola. Oras, bolas! Para que viver estudando? Negue a filosofia, a sociologia, a antropologia e outras logias do mundo. Negue a tudo no seu pensamento mais fundo. Preencha-se com o que afirmam as mensagens eletrônicas das redes sociais – por que você iria querer mais? Negue a imprensa, negue os jornalistas. E negue para eles que você é negacionista. Ou melhor, não diga nada a ninguém. Não levante provas contra você – não convém. Somente negue e pronto! Negue os telejornais, os jornais impressos, a informação bem apurada. Negue tudo, não aceite nada. Negue os dados, os fatos, os óbitos – quase seiscentos e vinte mil mortos pela Covid espalhados pelo Brasil para você negar. Negue ser o inteligente que você não é – e isso é fato. Negue para a gente num único ato.

Negue a doença, negue o mal, negue o vírus. Negue que a Terra é redonda, que as vacinas funcionam, que a OMS é uma organização idônea e fundamental. Negue até para as plantas do seu quintal que os melhores médicos do Brasil e do mundo já não sabem mais como lhe convencer que tudo foi e vai mal. Negue que votou no Diabo – depois, negue que não votou. Isso faz parte do jogo de quem você no poder colocou. Estamos acostumados. Negue que você ama uma farda, um coturno. Que adora uma opressão. Negue que no fundo do seu coração você queria mesmo era ver explodir de uma vez o fascismo – um negócio que você nega desconhecer, mas que você desconhece porque sempre se negou a estudar e a entender.

Negue. Como no samba de Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos, negue, diacho! Que negar é o que você faz de melhor e tem mais o de seu. Diga que o nosso pranto é covardia. Diga que este mundo não é meu. Rasgue a roupa, arranque os cabelos, grite, beba e brigue para poder negar e seguir negando. Negue que lhe faz bem. Negue como e com os cornos, como os traídos retratados nos sambas de antigamente. Negue! O que se pode fazer? Negue, pois talvez, para você, o melhor mesmo é ser sempre o último a saber.

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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017

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